Em Vigiar e punir, Foucault discorre a respeito do exercício do poder, analisando, para isso, sua práxis, exercida nas mais diversas instituições, inclusive no âmbito do sistema judiciário. O autor conclui que o corpo é o elemento primeiro de manifestação da “alma moderna”. Mas o que ele entende por modernidade? Qual o marco da sua gênese? Em As palavras e as coisas Foucault apresenta as três fases constitutivas do pensamento ocidental: a Renascença, a Época Clássica e a Modernidade.
Na Renascença, o homem estaria articulado indissociavelmente à divindade, a terra aos céus, o microcosmo ao macrocosmo; todos os reinos e filos da natureza eram manifestações reflexivas de Deus, e a missão do homem era servir de elo entre esta mesma natureza e as forças cósmicas. Neste período é impraticável estudar o homem fora do contexto mais amplo da natureza, já que são indissociáveis. De fato, à medida que são constituídos por um elemento comum, a saber, a infinitude cósmica, é impossível tratar o homem como ser singular do restante da natureza.
Nesse contexto, o corpo tem uma natureza compactada, residual, impossível de ser fragmentada em categorias. Sua função é servir como suporte, ponto de apoio às interações cósmico-naturais, ou seja, ele possui um caráter transcendental à medida que se encaminha, naturalmente, para atingir a instância cósmica como entidade complexa. Assim sendo, o corpo é praticamente invisibilizado à medida que é vislumbrado como mero receptáculo de uma entidade mais complexa, a alma.
O Classicismo, surgido entre os séculos XVII e XVIII, é um período eminentemente marcado pela busca de uma epistémê, ou seja, de “um sistema articulado de uma máthêsis, de uma taxonomia e de uma análise genética” (FOUCAULT, 1966, p. 89, grifo nosso). Em outras palavras, surge na Época Clássica uma profusão de linguagens, de nomenclaturas destinadas a sistematizar os reinos dos seres vivos, especialmente vegetais, e a singularizá-los como entidade única e que carrega em seu bojo uma complexidade. Nesse contexto, o ser humano se apresenta como o esquadrinhador da realidade, ou seja, o ordenador do universo, recorrendo para isso ao discurso científico, organizando, classificando e categorizando as coisas a partir da identificação de características comuns a elas.
Contudo, o homem não se auto-esquadrinhava. Não era ainda sujeito e objeto do conhecimento. Assiste-se a uma grande valorização da botânica, exatamente pelo fato de que a generalização e a categorização de espécies vegetais eram mais fáceis. Por outro lado, em virtude da complexidade dos corpos animais, a classificação dos mesmos era claramente artificial, preocupada apenas em registrar linhas, superfícies, formas e relevos. Podemos até afirmar que os corpos passam por um processo de invisibilização, onde o classificador se preocupa apenas em registrar quatro elementos:
[...] observar é, pois, contentar-se com ver. Ver sistematicamente pouca coisa [...]. As representações visuais vão enfim oferecer à história natural o que constitui seu objeto próprio [...]. Esse objeto é a extensão de que são constituídos os seres da natureza – extensão que pode ser afetada por quatro variáveis. E somente por quatro variáveis: forma dos elementos, quantidade desses elementos, maneira como eles se distribuem no espaço uns em relação aos outros, grandeza relativa de cada um (FOUCAULT, 1966, p. 148).
Finalmente, na modernidade, o paradigma muda: o homem torna-se medida de todas as coisas, sujeito e, ao mesmo tempo, objeto do seu próprio conhecimento. Ao transferir o homem para o centro da prática discursiva, a representação categorizadora e conceitual dos seres vivos é reordenada, obedecendo a este novo quadro sistêmico. Nesse sentido, o homem deixa de ser um mero esquadrinhador dos elementos constitutivos do universo, passando a ser estudado como entidade absolutamente distinta do resto dos seres vivos, medida e referencial no processo de percepção e captação de sentidos dos outros seres vivos. Para Foucault, a entrada do homem na história se dá neste período. Esta mudança epistemológica é conhecida por “analítica de finitude do homem”, ou seja, sendo o homem finito, esta finitude se manifesta no corpo que, a partir de agora, pode ser analisado, dissecado, esquadrinhado.
A ruptura com o discurso renascentista, metafísico por natureza, permitiu o advento da modernidade em que tudo o que vem a ser antagônico à realidade metafísica passa a ser valorizado, e em primeiro lugar, o corpo finito. De fato, com o descobrimento da morte, descortina-se um novo momento alicerçado no tempo e, conseqüentemente, na história. O corpo torna-se o ponto de apoio na produção de múltiplos saberes científicos na Modernidade. Em outras palavras, com a ampliação da espacialidade discursiva, surge uma profusão de verdades concernentes ao corpo humano, inclusive na literatura positivista. Em oposição à Renascença, onde o corpo era minimamente visibilizado em prol do elemento anímico, ou ainda, no Classicismo, onde o corpo era restringido a mera superfície, no discurso modernista ele ocupa um espaço central na produção de discursos científicos pretensamente neutros.
A microfísica forjada por Foucault torna-se profícua na análise de discursos em praticamente todos os domínios do conhecimento à medida que, para ele, a produção de verdades em relação ao corpo e a todos os elementos e fenômenos que o tocam está intimamente associada a discursos de poder. Sabemos que a religião moderna, o positivismo, com todos os seus tentáculos, deve ser apreendida como prática disciplinar que objetiva os corpos e os comportamentos aos quais ele configura, através do exame, da norma e da vigilância.
Nesse sentido, o positivismo deve ser encarado como um sistema ideológico que, ao mesmo tempo em que se opôs ao poder estabelecido, a saber, o eclesiástico, constituiu claras relações de força na tessitura do seu discurso científico pretensamente neutro, apropriando-se, assim, do corpo para se produzir o poder: “Não há constituição de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder” (FOUCAULT, 1975, p. 29-30).
Evidencia-se, desde já, que a microfísica do poder nos impõe uma leitura muita distinta dar forças de poder apreendidas por Karl Marx. Não se trata mais de enfatizar o processo de conflito entre duas grandes classes antagônicas, opressores e oprimidos, dominantes e dominados, proprietários e servos. Para Foucault o poder enquanto categoria social está dissolvido em todas as instâncias, estamentos e classes, sendo exercido por todos, seja em maior ou menor grau. Além disso, ele reconhece que o exercício do poder não se configura, exclusivamente nem de forma prioritária, na seara econômica. Seu estado diluído o faz presente em todos os âmbitos da vida humana: colégios, fábricas, casas, hospitais, corpos, almas.
A “morte de Deus” e, por consequência, a negação da idéia de eternidade, tem um papel importante na conflagração deste novo sistema chamado de “Modernidade”. De fato, para Foucault, a gênese da concepção de finitude da corporeidade humana está associada ao advento da Modernidade. Com ela, vimos também surgir uma série de conhecimentos que pretendem elencar, deliberar, explorar até o esgotamento uma gama infindável e sempre atualizável de patologias físicas e comportamentais, o que acabou culminando em uma produção vultosa de tipos discursivos, em seus mais variados significados e concepções a respeito do corpo, da psique e de seus aspectos. A tentativa de abalizar os limites fronteiriços entre sanidade e loucura é um exemplo modelar deste momento histórico em que as práticas configuradoras do comportamento e do corpo estão intimamente associadas. O que se nota, efetivamente, é uma profunda relação dialética a respeito da corporeidade: o discurso científico produz os mistérios do corpo a partir da cientifização do mesmo e, ao mesmo tempo, se debruça sobre o mesmo para desvendá-lo em seus pormenores. É o que Foucault (1979, p. 29) intitulou de “história efetiva”: A história “efetiva [...] lança seus olhares ao que está próximo: o corpo, o sistema nervoso, os alimentos e a digestão, as energias; ela perscruta as decadências”.
É óbvio que, junto ao surgimento destes novos conhecimentos a respeito do corpo humano que o conduziu a uma máxima e complexa significação, aparece também uma série de cientistas, psicólogos, terapeutas que elucidarão os “mistérios” profundos da corporeidade. O corpo converte-se em “superfície de inscrição para o poder, com a semiologia por instrumento” (FOUCAULT, 1975, p. 93) e passa a ser disputado acirradamente por experts dos mais variados domínios do conhecimento. A construção da política, nesse contexto, se dá a partir da dominação da corporeidade. Se Foucault questiona a idéia do poder opressor ser exercido por uma classe bem restrita, reconhecendo que tal práxis permeia todos os corpos e almas, não se pode negar que a Modernidade garante a um grupo condições sociais e econômicas de produzir com profusão e de forma sistêmica discursos visando controle, submissão e docilidade do nomos. Desse modo, esta disputa pela hegemonia na discursividade torna-se desigual à medida que os fatores privilegiaram uma classe em detrimento da maior parcela da sociedade.
É evidente que o sucesso do processo de metamorfoseamento de uma fala qualquer em um discurso plausível pressupõe o domínio do poder econômico. Desse modo, a construção de um discurso normalizador, utilitário e cristalizado envolve silenciar outras falas tão legítimas quanto o primeiro, mas incapaz de obter sucesso quanto o primeiro por carecer de instrumentos monopolizados pela burguesia.. Isso se dá não por meio de uma relação imparcial ou equânime, mas por meio do exercício do poder econômico. Aqui é o nascedouro de uma comunidade plausível, harmônica e estável. Desse modo, podemos conciliar a microfísica do poder com a macrofísica marxista.
Bibliografia
FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1966.
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Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1975.