O filme inglês “Priest” (“O Padre”), dirigido por Antonia Bird e lançado em 1994, foi recebido pela crítica como uma denúncia às mazelas e incoerências presentes no seio da Igreja. Alguns, inclusive, catalogaram-no como “filme gay” ou “ancticlerical”. A obra, com certa similaridade ao estilo almodovariano, aborda, de fato, temas picantes que já se tornaram clássicos para os cineastas moderninhos quando traz para a telona como estrela principal a Igreja Católica: homossexualismo, pedofilia, incesto, hipocrisia religiosa e corrupção econômica.
A obra trata da história do Padre Greg (Linus Roache) que, desejoso de trabalhar junto aos pobres, é enviado pelo bispo a uma paróquia em Liverpool. Não demora muito para que ele descubra que o pároco, Padre Matthew (Tom Wilkinson), não cumpre o celibato, mantendo um relacionamento estável com uma mulher. Este é apenas o primeiro fator que fará com que Greg entre em conflito e questione algumas regras da Igreja. Em seguida, Greg se revela homossexual, frequentando bares gays e se apaixonando por um rapaz (Robert Carlyle). O filme aborda, ainda, o sigilo da confissão ao apresentar a história de uma menina de 14 anos que, durante o sacramento da penitência, lhe conta que sofre abusos por parte do pai. Dividido entre sua vocação e sua sexualidade, entre as regras da Igreja e os problemas que testemunha, Greg teme ter sua fé abalada.
Estou convencido que esse tipo de leitura não toca efetivamente nos pontos nevrálgicos tratados pela cineasta. Não pretendo, com essa afirmação, negar que a obra apresente questões controversas envolvendo a Igreja. Seria uma estupidez de minha parte dizer tal coisa. Penso, inclusive, que muitos dos problemas alí elencados, como a questão sexual dos padres na trama, ainda estão sendo tratadas com cautela e parcimônia pela Igreja. Isso ficou evidente na 47ª Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ocorrida em maio desse ano, que teve por tema “A formação presbiteral: desafios e diretrizes”. No curso dos debates, o homossexualismo e o casamento de presbíteros chegaram a ser abordados, o que manifesta certa sensibilidade por parte dos bispos brasileiros em enfrentar questões humanas. Na ocasião do encerramento do evento, Dom Luis Soares Vieira, vice-presidente da CNBB, chegou a declarar que homossexuais podem ser padres, desde que guardem a castidade, exigência também feita aos heterossexuais. Trata-se, certamente, de um progresso para uma instituição que nem sempre conseguiu ou considerou pertinente discutir com objetividade assuntos espinhosos, preferindo invisibilizá-los ou simplesmente taxá-los de práticas imorais ou desviantes. Dirigindo os olhos e ouvidos à realidade humana dos seus próprios pastores, a Igreja reafirma sua beleza sobrenatural, configurando-se mais plenamente ao rosto de seu esposo, Cristo Jesus, que, frente às misérias humanas, “tomou sobre si nossas enfermidades e carregou as nossas dores” (Is 53, 4).
Mas, afinal de contas, qual a relação entre as discussões travadas na 47ª Assembléia Geral da CNBB e o filme “O padre”? Penso que ambos se tocam no quesito humanidade. Ao invés de elevarem os padres a uma categoria de deuses, titãs ou seres predestinados desde o seio materno à pureza e à santidade, estes passam a ser tratados nos discursos episcopal e cinematográfico como homens em toda a sua plenitude, passíveis, portanto, de erros e incoerências. Entretanto, o foco em ambos os casos não recai sob o pecado ou a incapacidade do ser humano em alcançar certo nível de integridade, mas da possibilidade do homem em aprender com seus próprios erros. Nesse contexto, tornar-se mais humano requer humildade, o que implica experimentar suas próprias incongruências.
Etimologicamente “humildade” vem de humus e significa “terra”. Ser humilde, portanto, significa reconhecer sua condição humana. Semelhante ao bispo de Hipona, Santo Agostinho, este é o caminho que o jovem Padre Greg tem que trilhar para se conhecer profundamente e exercer a compaixão para com os seus semelhantes, tornando-se, assim, um verdadeiro pastor, pobre entre os pobres. No início do filme, Greg é arrogante, extremamente seguro de sua vocação e de suas habilidades como líder carismático. Como porta-voz da verdade, exige que o pároco abandone a concubina; questiona seus sermões considerados excessivamente liberais (“Não somos assistentes sociais. Somos padres”) e políticos (“Parecia que eu estava em um comício do Partido Trabalhista”); defende a retomada de um discurso ortodoxo centrado no pecado individual, evitando justificar ou minimizar a transgressão moral devido a situação de indignidade social vivida pelos fiéis (“Você espera menos do povo por ser pobre”).
O velho Matthew, presbítero há várias décadas, é a típica figura do homem que, frustrado com as leis disciplinares da Igreja, vive em concubinato. Talvez seja por essa condição de fragilidade extrema é que tenha o coração de um pastor. Exerce a comapixão por se sentir necessitado da compaixão dos outros. Não se alça ao posto de juiz por esperar indulgência do seu povo. É pastor, mas se rebaixa ao nível de povo que espera do seu Deus uma libertação de toda espécie de escravidão, inclusive aquela que, revestida de elucubrações clericais, passe por justa e imutável devido a sua condição divina. Ao contrário do jovem padre, não usa o púlpito; prefere transitar no corredor da igreja durante a homilia, sentindo-se assim mais próximo de sua grei; a missa dá espaço a elementos simbólicos heterodoxos – quenas de bambu e vozes estrangeiras, provavelmente de “selvagens” bolivianos ou peruanos – bem diferente da faustosa liturgia romana, com seus órgãos e ritos barrocos triunfalistas.
A descoberta da homossexualidade de Greg pela mídia faz com que ele passe por uma verdadeira kenosis: tenta se matar; é expulso da diocese pelo bispo; interna-se em uma casa de reabilitação, onde é taxado por um padre cisudo e amante do latim como “pústula no corpo da Igreja prestes a soltar pus”. Recebe o apoio de Matthew, o velho padre fornicador. Torna-se humilde ao observar em si próprio o atributo comum a todos os seres humanos: a instabilidade. Converte-se em cúmplice da humanidade, reconhecendo-se à imagem e semelhança dos degredados filhos de Eva. Passa a vislumbrar a Cidade dos Homens como reflexo, mesmo que empalidecido, da Cidade de Deus. Transpõe, finalmente, as fronteiras da justiça e passa a viver pacificamente no terreno da misericórdia, reconciliado consigo mesmo e com o mundo.
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