Seria legítimo, ou, no mínimo, admissível, um profissional do Direito adotar discursos ou comportamentos discriminatórios ou preconceituosos? É profundamente tentador responder negativamente a questão de forma intempestiva, respaldados nos ciclos sócio-culturais da História humana, eivados por injustiças de toda sorte. Entretanto, para tecermos qualquer comentário de maneira responsável concernente ao assunto, devemos, primariamente, recorrer ao significado das palavras “discriminação” e “preconceito”.
Iremos nos valer do pensamento de Arnold Rose, sociólogo americano que na série Raça e Ciência, editada pela UNESCO, debruçou-se sob as origens, causas e conseqüências do preconceito. Este último foi definido por Rose (1972, p. 162) como um “estado de espírito” e a discriminação como uma maneira de agir, um modus agendi resultante desse mesmo estado de espírito.
A partir dessa definição sociológica, torna-se evidente o caráter concreto da discriminação que, muito mais do que simplesmente “distinguir ou discernir, [...] separar, especificar,” (FERREIRA, 1986, p. 596), trata de “infligir a certas pessoas um tratamento imerecido” (ROSE, 1972, p. 162, grifo nosso). Sendo assim, já podemos refutar com propriedade a idéia de um advogado, ou qualquer outro cidadão, agir de forma discriminatória, independentemente das circunstâncias envolvidas na ação.
É interessante observar que Arnold Rose recorre ao verbo “infligir” para qualificar o comportamento discriminatório. Creio que houve, por parte de Rose, uma intencionalidade em atribuir à discriminação um significado de dinamismo, de atitude, isenta, portanto, de qualquer resquício de passividade ou de inconsciência. De fato, o verbo “infligir” – do latim, infligere – nos remete à idéia de castigo, repreensão, aplicação de pena. Nesse contexto, a vítima do preconceito é vislumbrada como réu, criminoso sentenciado, merecedor, portanto, de uma punição.
Desse modo, é possível, desde já, reconhecer a discriminação como realidade visível, objetiva, corpórea, distintiva e punitiva. O direito sancionador se configura a partir da classificação social e comportamental, o que pressupõe, evidentemente, a existência de um sistema axiológico qualificativo-atributivo rígido, que premia ou desvalora grupos e atributos segundo critérios estabelecidos dentro de premissas cristalizadas. Grupos sociais são estereotipados a partir deste processo de generalização.
A partir deste panorama conceitual pode advir outra questão. Qual é a gênese do comportamento do ofensor que se digna capacitado a atribuir valores a comportamentos individuais ou comunitários? Rose (1972, p. 167) nos auxilia nesta empreitada “A ignorância [...] é a base dos preconceitos, toma aspectos dos mais diversos”. Ignorar significa desconhecer os atributos e variáveis que intervém direta ou indiretamente em um fenômeno, seja este social ou não. A pretensão de tudo saber faz com que equívocos sejam disseminados como realidades, recorrendo-se, para isso, a mecanismos comparativos entre o modus vivendi ideal do detentor do discurso e outros estados “anômalos” de comportamento.
Ser protagonista de práxis discriminatórias é negar o princípio de dignidade da pessoa humana. Materializar diferenças, mesmo que de forma não positivada, é rechaçar a inexauribilidade de valores fundamentais indisponíveis. Adotar tais posturas na seara jurídica implicaria na recusa, mesmo que inconsciente, do dever universal de se “fazer direito”, especialmente no momento histórico em que vivemos, marcado pelo desejo de respeitar o indivíduo em todas as suas singularidades.
O que se espera de um advogado é a capacidade de ler os sinais dos tempos. Sinais dos tempos que se corporificam nos pleitos sem julgamento de mérito, nas vozes dissonantes de magistrados taxados de heterodoxos e nas proposições vanguardistas tramitando no Congresso. Em outras palavras, espera-se que um advogado reconheça o papel efetivo da ética na construção de um ordenamento jurídico que prime pela tutela das diferenças em todos os campos (culturais, políticos, sexuais e religiosos).
É tarefa do advogado visibilizar corpos e instigar vozes emudecidas. É vital, para isso, construir discursos. E o que faz um advogado senão produzir discursos? Entretanto, a edificação de uma fala exige o rompimento com outros discursos hegemônicos, reinterpretando verdades, desestabilizando-as e implodindo fronteiras axiológicas. Desse modo, a tutela jurisdicional pode se dilatar, fazendo com que a solidariedade, princípio fundamental da terceira geração de direitos (MORAES, 2003), permeie todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Bibliografia
DERRIDA, J. O olho da universidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.
DISCRIMINAÇÃO. In: FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
MORAES, A. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
ROSE, A. M. A origem dos preconceitos. In: Raça e ciência II. São Paulo: Perspectiva,1972.
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