terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Os Pressupostos Processuais

Comumente a doutrina subdivide os pressupostos processuais em duas grandes categorias, a saber: pressupostos processuais extrínsecos e pressupostos processuais intrínsecos.
Os pressupostos processuais extrínsecos estão vinculados às pessoas ou institutos atrelados à ação judicial. São eles:

a) Juízo competente;
b) Juiz imparcial, prevento de suspeição ou outro modo de impedimento;
c) Capacidade jurídica das partes;
d) Capacidade postulatória das partes (caso da Lei 9.099);
e) Capacidade postulatória do advogado ou do Ministério Público.

Os pressupostos processuais intrínsecos, por sua vez, estão relacionados ao próprio modus operandi do rito processual. São divididos em três:

a) Citação;
b) Petição inicial;
c) Sentença (com ou sem a análise do mérito).

Vale destacar que há, ainda, dois pressupostos processuais negativos que são elementos ou realidades a serem evitadas já no início do curso do processo. De fato, caso se façam presentes, o processo apresentado em juízo é inválido. Estes dois fenômenos são: litispendência e coisa julgada. Ambos apresentam duas ou mais lides constituídas pelas mesmas partes, causa de pedir e pedido. A única distinção entre ambos é o fato de que o primeiro refere-se às lides em tramitação e o segundo, por sua vez, já transitou em julgado.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Paz e Justiça Verídicas: Uma Leitura Possível

Como de costume, a Igreja Católica, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), propôs, no início da quaresma deste ano, um tema que servisse de reflexão aos seus fiéis e a todos os homens de boa vontade. Para esse ano o tema da Campanha da Fraternidade (CF) foi segurança pública, tendo como lema “A paz é fruto da justiça”. Trata-se, sem dúvida, de um assunto extremamente propício e imperioso para uma nação alarmada com os mais altos índices de violência em sua história a qual tem vitimado cidadãos de todas as classes sociais.

Além disso, vale destacar que a recomendação da Igreja é analisar o problema da segurança pública brasileira dentro de uma perspectiva social e não criminológica, evitando, assim, apontar soluções simplistas respaldadas em critérios puramente jurídico-repressivos ou moralistas, negando ou minimizando, assim, a evidente relação entre conflito e o quadro de injustiça social. Esta é uma leitura legítima e ponderada, mas certamente, não a única. Afinal de contas, nenhum texto é essencialista e unívoco.

De fato, se formos analisar o lema em questão dentro das possibilidades que a linguagem nos permite, reconheceremos que este traz em seu bojo conceitos de grande amplitude, com significados extremamente complexos e, frequentemente distintos, chegando, em alguns casos, a assumir concepções até mesmo antagônicas. Afinal de contas, o que vem a ser “paz” e “justiça”? São realidades emblemáticas e que exatamente pelo seu caráter simbólico estão cheias de lacunas e labirintos, abarcando uma riqueza infinita de sentidos. Para aceitarmos a afirmação anterior devemos admitir que toda palavra é caracterizada pela instabilidade, ou seja, seu significado não está circunscrito ao termo em si mas a outros fatores externos à ela. Exemplificando, o sentido de paz não pode ser apreendido a partir da própria palavra, mas de realidades que extrapolam a linguagem.

De fato, o que garante sentido a uma palavra é um conjunto de elementos culturais amalgamados por um grupo social circunscrito a período histórico que lhe outorga certo grau de estabilidade e naturalidade, qualificando-a, em certos casos, ao posto de realidade universal e inquestionável, ausente, portando, de qualquer ambiguidade. Ao reconhecer a instabilidade da linguagem, e, portanto, da realidade que nos circunda, não refuto a possibilidade de se exprimir por meio do discurso a existência do ser, o que, em outras palavras, significaria defender o niilismo completo. O que levanto é apenas que a apreensão de um termo só pode ser efetivamente realizada a partir da identificação do valor dado a ele e que se encontra sempre às margens do fenômeno puramente lingüístico. Falando de outro modo, a palavra não possui nenhuma autonomia em relação à aquele que a proferiu. É nesse sentido que Saussurre (1969, p.135) afirma em sua teoria de valor: O valor de qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia; nem sequer da palavra que significa ‘sol’ se pode fixar imediatamente o valor sem levar em conta o que lhe existe em redor [...].

A partir das questões supracitadas, creio que podemos retomar a questão da complexidade do lema da CF de 2009. Para ser mais exato, vamos nos ater a problemática do significado das palavras “paz” e “justiça” presentes no lema escolhido.
Em primeiro lugar é importante reconhecer que “paz” é um tipo de termo que tem sido usado durante séculos para designar realidades, condições e estados conscientes e inconscientes diversos. Consultando algumas fontes bibliográficas, logo notaremos que os atributos linguísticos constitutivos do substantivo feminino “paz” não se coadunam sob vários aspectos.

Se para o dicionário Aurélio o termo indica exclusivamente um estado positivo, designando “ausência de lutas, violências ou perturbações sociais”, a univocidade interpretativa do conceito não se dá no âmbito da Igreja Católica. De fato, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, além de mencionar uma paz resultante do amor, registra uma “paz da morte”, qualificada de “horrenda” e caracterizada pela recusa em “abandonar as inimizades e os ódios” [e pela inconclusão de] “pactos firmes e honestos de paz universal”. Notamos, desde já, que a expressão em questão pode designar dois significados opostos para a Igreja: uma realidade falseada, mesmo que legítima, e outra autêntica.

O que garantiria autenticidade da paz? A justiça. A Gaudium et Spes é categórica nesse sentido ao citar o capítulo 32, versículo 78 do profeta Isaías que reconhece a paz como “obra da justiça”. Entretanto, não se trata de um fruto já em estado pleno de maturidade. A Igreja reconhece que a paz “deve ser realizada em perfeição progressiva, pelos homens que têm sede da justiça”. Surge aqui uma questão extremamente interessante. Como é possível falar em “perfeição progressiva”? Não estaríamos negando o princípio fundamental da perfeição ao lhe designar o atributo de progressão? Ainfal de contas, o termo perfeição já não designaria o estado final de uma obra concluída?

Erroneamente foi atribuído à esta palavra o significado de estado de perfeito equilíbrio ou ausência de erros e defeitos de toda natureza. Entretanto, etimologicamente “perfeição” vem de perficio e significa algo que se está fazendo, ou seja, estado inacabado, algo que ainda não se findou. Em suma, o fato da Igreja estimular e promover a implantatio da paz perfeita na terra – a Cidade dos Homens – significa, na prática, reconhecer o processo infinito da construção da paz. Para a Igreja ela nunca estará plenamente acabada na Cidade dos Homens. Esta incompletude é que faz com que o cristão aspire outra pólis, a Cidade de Deus, que nas palavras de Santo Agostinho (apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 115), estará “liberta de todo mal e repleta de todo bem, gozando indefectivelmente na alegria dos gáudios eternos”. Só nos resta construir nossa frágil cidade, reconhecendo a perfeição da obra como transitus, processus, desejando herdar a Cidade de Deus.

Entretanto, tal visão transcendental não refuta a necessidade de fazer com o reino de Deus se instaure, mesmo que de forma limitada, em nosso mundo sensível e imperfeito. Qual o material adequado para a edificação de tal cidade em “perfeição progressiva”? O lema da CF de 2009 é claro ao reconhecer a justiça como fundamento de uma paz que, diferente da “paz de morte”, seja duradoura. Em outras palavras, a justiça é causalidade e a paz é efeito.
Mas o que vem a ser “justiça”? Para a Igreja a justiça é uma virtude moral que implica “na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido” (CATECISMO..., 1999, p. 486). Nesta definição já percebemos que, em oposição à concepção usual de justiça – alicerçada simplesmente no equilíbrio de forças entre os indivíduos – a Igreja assinala a justiça como realidade dual, caracterizada por uma relação adequada em relação à divindade e aos homens.

Ser justo significa, em primeiro lugar, submeter-se à vontade de Deus. Santo Agostinho (apud CATECISMO..., 1999, p. 48) é taxativo ao reconhecer a obediência à divindade como a verdadeira raiz da justiça e, por consequência, o caminho de acesso à felicidade: “Viver bem não é outra coisa senão amar a Deus [...]. Dedicar-lhe um amor [...] que obedece exclusivamente a Ele (e nisto consiste a justiça]”. Corre-se o risco, frente a uma sociedade cética, negar a gênese divina da justiça. Por outro lado, se fôssemos nos ater a esta única face do conceito de justiça, a Igreja poderia ser acusada de ser excessivamente angélica e pouco comprometida com a Cidade dos Homens, que, mesmo sendo frágil e inconstante, é de fato a realidade primeira que nos cerca.
Entretanto, vale reafirmar que a concepção de justiça proposta pela Igreja é dual e não dualista, ou seja, deve ser compreendida como realidade constituída por duas facetas, mas facetas que não se contrapõem em momento algum. Ou pelo menos não deveriam. Afinal de contas, ser dócil à vontade divina pressupõe ser justo para com o outro, ou seja, ser reto para com o próximo, respeitando, assim, os direitos de cada um. É evidente que a concepção de próximo implica admitir a existência de uma natureza comum entre os homens.

Para a Igreja a concepção de pessoa humana é profunda e abarca o mistério da filiação divina. A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada pelo fato de todo indivíduo nascer de Deus e voltar para Deus. Vemos então entrelaçar intimamente as duas facetas conceituais de justiça. A miséria social atenta contra a paz porque é injusta e o mesmo se dá com o aborto.

Não se trata de uma mera visão estreita ou retrógada. Não poderíamos compreender com justeza o pensamento moral da Igreja se não reconhecermos que sua concepção de dignidade de pessoa humana se nutre da concepção de Deus como criador e pai. Corre o risco das discussões da CF de 2009 terem gravitado apenas em torno do problema da justiça social em seu caráter mais assitencialista ou político-partidário. Na verdade, defender a justiça significa defender o que o homem tem de mais precioso: a filiação divina. Veja o porquê do aborto, da eutanásia, da corrida armamentista e da exploração social e sexual serem combatidas pela Igreja. Não se tratam de questões desconectas, mas problemas comuns que violam a justiça e impedem que a paz se visibilize. Usando o jargão tipicamente brasileiro, a exploração social no Haiti e a prática da eutanásia na Holanda são farinhas do mesmo saco! Aqui não se trata mais de defender nem um discurso legal, crimonológico, nem outro que priorize discussões centradas em cor, gênero ou classe social.
O que se observa, de fato, é que a Igreja aborda a justiça do modo mais apropriado, ou sejam com ponderação. Ela não se restringe a tratar o problema da dignidade do homem dentro de uma perspectiva assistencialista. O Estado costuma adotar essa postura por depender de votos dos excluídos com muita regularidade. A Igreja trata o homem como ser maduro, capacitado a construir uma história em que corpo e alma, terra e céu, morte e vida, eu e o outro não se conflituem, mas vivam em equilíbrio. Assim, a CF não nos convida a combater apenas injustiças econômicas, mas toda forma de vida ou práxis ideológica que rompa com a harmonia entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Discurso Jurídico e Preconceito

Seria legítimo, ou, no mínimo, admissível, um profissional do Direito adotar discursos ou comportamentos discriminatórios ou preconceituosos? É profundamente tentador responder negativamente a questão de forma intempestiva, respaldados nos ciclos sócio-culturais da História humana, eivados por injustiças de toda sorte. Entretanto, para tecermos qualquer comentário de maneira responsável concernente ao assunto, devemos, primariamente, recorrer ao significado das palavras “discriminação” e “preconceito”.

Iremos nos valer do pensamento de Arnold Rose, sociólogo americano que na série Raça e Ciência, editada pela UNESCO, debruçou-se sob as origens, causas e conseqüências do preconceito. Este último foi definido por Rose (1972, p. 162) como um “estado de espírito” e a discriminação como uma maneira de agir, um modus agendi resultante desse mesmo estado de espírito.

A partir dessa definição sociológica, torna-se evidente o caráter concreto da discriminação que, muito mais do que simplesmente “distinguir ou discernir, [...] separar, especificar,” (FERREIRA, 1986, p. 596), trata de “infligir a certas pessoas um tratamento imerecido” (ROSE, 1972, p. 162, grifo nosso). Sendo assim, já podemos refutar com propriedade a idéia de um advogado, ou qualquer outro cidadão, agir de forma discriminatória, independentemente das circunstâncias envolvidas na ação.

É interessante observar que Arnold Rose recorre ao verbo “infligir” para qualificar o comportamento discriminatório. Creio que houve, por parte de Rose, uma intencionalidade em atribuir à discriminação um significado de dinamismo, de atitude, isenta, portanto, de qualquer resquício de passividade ou de inconsciência. De fato, o verbo “infligir” – do latim, infligere – nos remete à idéia de castigo, repreensão, aplicação de pena. Nesse contexto, a vítima do preconceito é vislumbrada como réu, criminoso sentenciado, merecedor, portanto, de uma punição.

Desse modo, é possível, desde já, reconhecer a discriminação como realidade visível, objetiva, corpórea, distintiva e punitiva. O direito sancionador se configura a partir da classificação social e comportamental, o que pressupõe, evidentemente, a existência de um sistema axiológico qualificativo-atributivo rígido, que premia ou desvalora grupos e atributos segundo critérios estabelecidos dentro de premissas cristalizadas. Grupos sociais são estereotipados a partir deste processo de generalização.

A partir deste panorama conceitual pode advir outra questão. Qual é a gênese do comportamento do ofensor que se digna capacitado a atribuir valores a comportamentos individuais ou comunitários? Rose (1972, p. 167) nos auxilia nesta empreitada “A ignorância [...] é a base dos preconceitos, toma aspectos dos mais diversos”. Ignorar significa desconhecer os atributos e variáveis que intervém direta ou indiretamente em um fenômeno, seja este social ou não. A pretensão de tudo saber faz com que equívocos sejam disseminados como realidades, recorrendo-se, para isso, a mecanismos comparativos entre o modus vivendi ideal do detentor do discurso e outros estados “anômalos” de comportamento.

Ser protagonista de práxis discriminatórias é negar o princípio de dignidade da pessoa humana. Materializar diferenças, mesmo que de forma não positivada, é rechaçar a inexauribilidade de valores fundamentais indisponíveis. Adotar tais posturas na seara jurídica implicaria na recusa, mesmo que inconsciente, do dever universal de se “fazer direito”, especialmente no momento histórico em que vivemos, marcado pelo desejo de respeitar o indivíduo em todas as suas singularidades.

O que se espera de um advogado é a capacidade de ler os sinais dos tempos. Sinais dos tempos que se corporificam nos pleitos sem julgamento de mérito, nas vozes dissonantes de magistrados taxados de heterodoxos e nas proposições vanguardistas tramitando no Congresso. Em outras palavras, espera-se que um advogado reconheça o papel efetivo da ética na construção de um ordenamento jurídico que prime pela tutela das diferenças em todos os campos (culturais, políticos, sexuais e religiosos).

É tarefa do advogado visibilizar corpos e instigar vozes emudecidas. É vital, para isso, construir discursos. E o que faz um advogado senão produzir discursos? Entretanto, a edificação de uma fala exige o rompimento com outros discursos hegemônicos, reinterpretando verdades, desestabilizando-as e implodindo fronteiras axiológicas. Desse modo, a tutela jurisdicional pode se dilatar, fazendo com que a solidariedade, princípio fundamental da terceira geração de direitos (MORAES, 2003), permeie todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Bibliografia
DERRIDA, J. O olho da universidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

DISCRIMINAÇÃO. In: FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

MORAES, A. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

ROSE, A. M. A origem dos preconceitos. In: Raça e ciência II. São Paulo: Perspectiva,1972.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Os Princípios Informadores do Processo Civil

Há dois princípios constitucionais que permeiam todo o processo civil pátrio: a ampla defesa e o contraditório e a celeridade. O inciso LV de noss Carta Magna reza que "[...] aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa [...]". Os pressupostos processuais intrínsecos se constituem em instrumentos formais garantidores de tais direitos. De fato, a citação válida, a petição inicial e a sentença fundamentada fomentam a segurança jurídica.

A celeridade, por sua vez, está prevista no inciso LXXVIII da Constituição Federal em vigor, a saber: "[...] a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo que garantam a celeridade de sua tramitação".

É evidente que os dois princípios elencados parecem opor-se, em um primeiro momento. Entretanto, não se trata de um fenômeno conflitivo, mas de uma complementariedade forjada, sem dúvida, dentro de uma complexa relação dialética que envolve, também, a presença de instabilidade devido ao seu caráter subjetivo. Se o juiz deve primar pela celeridade processual, garantindo às partes a efetivação e consolidação do direito. De fato, é tarefa sua garantir à parte oponente todas as possibilidades processuais previstas.

O magistrado, portanto, deve se mover dentro destes marcos fronteiriços tão tênues, em que o respeito à ampla defesa pode levar o Judiciário à acusação de lento e ineficaz. Por outro lado, abrir mão do contraditório até o último grau em benefício de uma pretensa otimização do tempo pode otimizar a atividade judicante, mas correndo o enorme risco de ser parcial.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Epicurismo versus Estoicismo

Creio ser impossível optar entre o epicurismo e estoicismo, pelo menos se estivermos pretendendo alçar nossa decisão ao posto de verdade unívoca e atemporal. Estamos tratando de um processo de escolha, realidade esta que por si só é instável. Toda escolha pressupõe capacidade de comprometimento com algumas questões tidas por primárias em detrimento de outras.

Desse modo, a escolha entre a apatia e o prazer como via felicis deve ser vislumbrada como meras pretensões legítimas de produzir significados, os quais, por sua vez, garante a plausibilidade social. Reconhecendo, assim, que uma escolha é, em si mesma, precária – à medida que não pode ser elevada à categoria de realidade estável e universal – podemos afirmar que tal decisão é passível de ser feita a partir da identificação de alguns elementos que, pretensamente, caracterizam a sociedade pós-moderna.

E o que caracteriza melhor a pós-modernidade que o relativismo? De fato, a crítica ferrenha à razão enquanto fonte absoluta da verdade é o elemento basilar na discursividade contemporâna. Nesse contexto, em detrimento da concepção estóica do aniquilamento da paixão, Epicuro passa a ter espaço certo ao alavancar a felicidade ao posto primeiro na vida humana.

O prazer epicurista é resultante da liberdade, o que vem de encontro também à contemporaneidade. Entretanto, Epicuro reconhece o papel da amizade – e, portanto, do grupo – na busca da felicidade. Se vivemos cada vez mais em guetos dentro de megalópoles – o que romperia com a visão epicurista – ambos – liberdade e amizade – são exaustivamente explorados pela mídia como elementos não apenas desejáveis, mas disponíveis no comércio. Nesse sentido, Epicuro vive e dá muito lucro!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Teoria Geral da Prova

O ordenamento jurídico brasileiro prevê um leque considerável de tipos probatícios na seara do processo civil, bem como na penal. Ateremo-nos a discorrer sobre as provas no âmbito cível. Nem todo ato alegado em juízo dependerá de provas, o que evidencia o caráter de celeridade no ãmbito da ação. Outro aspecto principiológico que norteia o nosso Código de Processo Civil (CPC) impõe à parte que alegou o fato o ônus da prova. Tal postura discriminada pelo legislador impõe ao rito processual certa parcimônia e cautela a serem cultivadas pelas partes. O CPC arrola quatro tipos de provas, basicamente: Prova Documental; Prova Testemunhal; Prova Pericial; e Inspeção Judicial.

O texto em questão elenca, ainda, a confissão, quando, judicial ou extrajudicialmente, a parte admite a verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário. A prova testemunhal é recorrente na práxis jurídica. A pericial, por sua vez, se restringe a lides que, por razões consideráveis, exija que técnico, nomeado previamente pelo magistrado, examine, vistorie ou avalie determinado fato, produzindo um laudo. É importante observar que nenhuma prova, por mais evidente que seja, cerceará a liberdade do juiz na apreciação da lide. Trata-se do respeito do princípio da persuasão racional.

A figura da inspeção judicial é pouco recorrente na contemporaneidade. De todo modo, trata-se de uma tipologia probatória prevista no artigo 440 de nosso CPC. Neste caso, a pessoa do juiz, como representante do Estado, analisa in loco fato, coisa ou pessoa. Merece, ainda, discriminar a figura do informante que não se confunde com a testemunha. Todas as pessoas podem depor como testemunhas, exceto incapazes, impedidos ou suspeitos. De todo modo, o juiz, em certas condições, pode ouvir qualquer um, atribuindo às suas palavras "o valor que possam merecer" (art. 405, parágrafo 4º).

A Jurisdição e o Princípio da Imparcialidade

A jurisdição é conceituada por muitos doutrinadores como poder, função e atividade. Poder de dirimir conflitos, função orgânica e estatal, vinculada, portanto, a uma estrutura visível competente em atuar na resolução e/ou apreciação de conflitos sociais e atividade do juiz enquanto representante do Estado em apreciar objetivamente a lide. Toda ação jurisdicional se dirige, exclusivamente, ao Estado. Esta é a característica primeira da ação (as outras são: natureza constitucional, devido processo legal, autonomia, abstração e instrumentalidade). Isto significa, em outras palavras, que o direito de ação não se dirige ao violador do direito e, nem mesmo ao juiz, como defendia Carnelutti, mas ao Estado que tem o dever de apreciar o pleito, sentenciando favorável ou desfavoravelmente.
O atributo fundamental que permeia todo o processo jurisdicional é a imparcialidade. O Estado moderno garante a imparcialidade às partes como elemento jurisdicional e axiológico. Os princípios da investidura e do juiz natural estão intimamente associados à imparcialidade. De fato, a garantia da lide ser apreciada por um indivíduo investido oficialmente na competência de "dizer o direito", bem como a interdição do tribunal de exceção no plano jurídico nacional, faz com que a tutela jurisdicional não apenas seja pautada dentro do princípio da inevitabilidade – impossibilidade das partes ou de uma delas se oporem a sentença judicial – mas alcance um alto grau de plausibilidade dentro do seio da sociedade. O princípio da imparcialidade também exige por parte do magistrado uma série de exigências no curso do processo, ou mesmo antes da formalização efetiva da lide, com o intuito de garantir uma expectativa de neutralidade por parte do seu "agir" ou "não agir". A declaração de impedimento é um destes instrumentos arrolados pelo Codex.

Filosofia tardia

Impressiona-me o fato da Filosofia ter tardado a ocupar algum espaço afetivo em minha vida. Durante os mais de vinte anos em que ocupei os bancos escolares, o conhecimento filosófico era tratado de forma excessivamente abstrata, desconectado com o mundo e seus problemas, o que me levou a considerá-lo um campo demasiadamente especulativo e contemplativo, pouco fértil a espíritos jovens e práticos que, como eu, esperavam encontrar soluções instantâneas às mazelas sociais de uma sociedade pós-moderna que despontava, caracterizada pela desconfiança a discursos melindrosos e ortodoxos. Sendo assim optei por afastar-me do caminho abrolhoso da Filosofia. Estava convencido da impossibilidade de tornar-me um dia amante dessa nobre senhora. Ela era por demais geniosa e altiva para ser amada por um sujeito raquítico que se limitava a reproduzir discursos partidários requentados. Não vislumbrava a filosofia como instrumento válido na apreensão do meu mundinho restrito a foices, martelos e kibutzim.

Frente ao tratamento departamentalizado do conhecimento na universidade fui me convertendo gradualmente em um sujeito caótico, pouco convencido da objetividade da realidade, levando-me, por conseguinte, a recusar a possibilidade de se apreender por meio do discurso científico a verdade de todo e qualquer fenômeno social. Acreditava, desde então, que toda fala, inclusive a minha, era essencialmente babélica. Agora estava plenamente convencido de que o abandono da Filosofia tinha sido um bom negócio, tanto para mim como para ela. Afinal de contas, naquela época, vislumbrava estupidamente a Filosofia como área do saber caracterizada pela tentativa de se apreender a verdade dos objetos e fenômenos de forma unívoca. Eu, entretanto, como protótipo de jovem vermelho, não estava disposto a renunciar minha promiscuidade intelectual. Mesmo que intentasse não poderia ser um amante fiel, pois era no terreno da desordem que se localizava a fonte do meu modo de pensar, caracterizado pela liberdade em recorrer a qualquer saber, legitimado ou não pela academia, livre, portanto, de cercas e arames axiológicos.

Em razão de minha desconfiança cristalizada, passei a explorar campos que me pareciam mais auspiciosos para o cultivo das minhas idéias que, apesar de sempre despontarem sob o completo domínio da anarquia, eram coerentes. Nesse momento a literatura surge com fulgor. Apaixonei-me pela ficção, especialmente a russa, a francesa e a brasileira. A Filosofia pura dos encorpados manuais e tratados foi esquecida por um bom tempo. Não havia mais espaço para ela à medida que a Literatura encorpava-se, estendia seus ramos com liberalidade. Deleitava-me ao constatar que a Literatura reconhecia a infinitude de transposições interpretativas, fruto da contradição inerente à própria palavra. A Filosofia sistemática, por sua vez, me parecia se configurar de forma oposta, buscando apreender a palavra/discurso em toda sua inteireza. Estupidez extrema!

Felizmente, um pequeno livrinho – florilégio do pensamento de alguns filósofos estruturalistas e pós-estruturalistas – produziu uma verdadeira metanóia em relação à Filosofia. Foucault, por exemplo, que era filósofo, me ajudou a compreender a instabilidade de qualquer discurso, seja este de natureza filosófica ou literária: “A morte da interpretação é o crer que há símbolos que existem primariamente, realmente como marcas coerentes, pertinentes e sistemáticas. A vida da interpretação, pelo contrário, é o crer que não há mais do que interpretações (FOUCAULT, [19--?], p. 21).

A Filosofia e a Literatura, nesse sentido, passaram a ser analisadas como campos do saber que partilham, essencialmente, o mesmo destino, por serem instáveis à medida em que se configuram como
realidades subordinadas a um sistema lingüístico, resultando assim em campos abertos do saber cujos limites fronteiriços são extremamente flexíveis. Desde então apreendi a cultivar a filosofia como instrumento por excelência na práxis de análise e construção de sentidos dos textos literários, reconhecendo-os que todos eles são constituídos por “um batalhão de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias” (NIETZSCHE, 1974, p. 56).

Ética e Alteridade: uma análise da canção "Metamorfose Ambulante", de Raul Seixas

A tessitura da canção “Metamorfose Ambulante” se dá a partir do confronto entre dois fenômenos sociais: um nomos totalizante, cristalizado e plausível e uma ética singular, anômica, instável e individual do poeta. Recorrendo a letra da própria música, é a oposição entre os que tem “ a velha opinião formada sobre tudo” e aquele que se vislumbra como uma “metamorfose ambulante”.

Esta rivalidade no âmbito da arte pode ser bem acolhida pela reflexão filosófica. Primeiramente devemos nos questionar? Qual o fenômeno social que pressupõe apontar princípios, normas ou regras universalizantes? A moral, sem dúvida. De onde surge a moral? Do hábito, da repetição: “[...] uma disposição permanente de agir de uma certa maneira” (ALMEIDA, 2002, p. 17). O pensamento do poeta “metamorfose ambulante” nasce da moral, do éthos? Evidentemente que não. Seu discurso se constrói a partir da negação e fissura de modelos sociais que se arvoram em tudo saber e explicar.

Se por um lado a fala do poeta não é moralizante, à medida que nega o valor da repetição e da estabilidade, não podemos negar-lhe o caráter ético. É da intencionalidade do autor dar sentido, plausibilidade ao seu mundo, mesmo reconhecendo que tal construção não se dará através da negação da instabilidade das coisas que o cercam, nem mesmo da inconstância que traz dentro de si (“eu quero viver nessa metamorfose ambulante”). A plausibilidade do seu êthos, de sua morada, se assenta na transitoriedade das coisas, na impossibilidade de ser coerente o tempo todo (“eu sou um ator”), na efemeridade das coisas e dos mundos (“Se hoje eu sou estrela / Amanhã já se apagou / Se hoje eu te odeio / Amanhã lhe tenho amor).

domingo, 6 de dezembro de 2009

Princípios Constitucionais: Celeridade e Efetividade do Processo versus Ampla Defesa e Contraditório

A possibilidade do ordenamento jurídico brasileiro conviver com dois princípios que, em um primeiro momento, podem ser vislumbrados como antagônicos, evidencia, na verdade, a preocupação do estado em tutelar direitos que, antes de serem caracterizados erroneamente como conflitivos, devem ser vislumbrados como princípios complementares. O tema em questão tem sido debatido apaixonadamente no parlamento brasileiro, especialmente em virtude de já estarmos vivendo em período pré-eleitoral. Neste sentido tramita na Câmara dos Deputados uma proposição que almeja impedir a candidatura de cidadãos que estejam respondendo a processos na seara criminal. Isto significaria, segundo os seus defensores, uma medida eficaz no processo de seleção de candidatos a cargos eletivos que, teoricamente, representariam o povo sem se resvalarem em questões morais e éticas.

A idéia em si parece boa e tende a contar com o apoio maciço da população. Além do apoio popular, tratar-se-ia de uma medida já adotada em vários países. A França, por exemplo, e, recentemente, a Espanha, negaram a candidatura de indivíduos que respondiam a ações criminais, independentemente da lide ter transitado em julgado.


Segundo, ainda, os proponentes, a ineficácia do princípio da celeridade no Judiciário brasileiro justificaria a adoção de tal postura. A doutrina nacional é clara a esse respeito e se opõe a este tipo de discurso que, sob a pretenção de resolver problemas sociais antiquíssimos, se envereda em defender psoturas que não levam em consideração uma série de variáveis intervenientes.

De fato, o princípio da ampla defesa e do contraditório é um instrumento de amparo, de salvaguarda das partes, seja no âmbito civil ou penal.


A presunção da inocência não deve ser vislumbrada como um elemento negativo e problemático, mas como um princípio de tutela, de defesa do cidadão comum a qualquer pretensão totalitária por parte do Estado, o que poderia nos conduzir a regimes políticos excessivamente centralizadores e pouco democráticos.


É evidente que o Judiciário do país tem por obrigação exigir mudanças no corpo legislativo afim de que a atividade judicante alcance um padrão de excelência quanto aos critérios de celeridade e aplicabilidade da própria decisão judicial. Isto implicaria, por exemplo, que as possibilidades processuais de recursos de recursos fossem restringidos, o que se trata de uma outra questão que não será aqui abordado. A questão, em suma, é questionar se a defesa apaixonada do princípio da celeridade e efetividade do processo deve nos levar a alçá-la ao posto primeiro dentre os princípios informadores, relegando o princípio da ampla defesa e do contraditório a um segundo momento. Penso que a concepção hegeliana de discurso permanece sendo tão válida quanto outrora. Onde há produção de discursos há diáletica, o que evidencia a necessidade de tempo na apreciação da lide. Neste contexto, é tarefa do juiz transitar harmoniosamente entre estes dois pólos, evitando, a todo custo, apoiar-se, exclusivamente, em um único princípio.

O Exercício do Poder na Modernidade

Em Vigiar e punir, Foucault discorre a respeito do exercício do poder, analisando, para isso, sua práxis, exercida nas mais diversas instituições, inclusive no âmbito do sistema judiciário. O autor conclui que o corpo é o elemento primeiro de manifestação da “alma moderna”. Mas o que ele entende por modernidade? Qual o marco da sua gênese? Em As palavras e as coisas Foucault apresenta as três fases constitutivas do pensamento ocidental: a Renascença, a Época Clássica e a Modernidade.

Na Renascença, o homem estaria articulado indissociavelmente à divindade, a terra aos céus, o microcosmo ao macrocosmo; todos os reinos e filos da natureza eram manifestações reflexivas de Deus, e a missão do homem era servir de elo entre esta mesma natureza e as forças cósmicas. Neste período é impraticável estudar o homem fora do contexto mais amplo da natureza, já que são indissociáveis. De fato, à medida que são constituídos por um elemento comum, a saber, a infinitude cósmica, é impossível tratar o homem como ser singular do restante da natureza.

Nesse contexto, o corpo tem uma natureza compactada, residual, impossível de ser fragmentada em categorias. Sua função é servir como suporte, ponto de apoio às interações cósmico-naturais, ou seja, ele possui um caráter transcendental à medida que se encaminha, naturalmente, para atingir a instância cósmica como entidade complexa. Assim sendo, o corpo é praticamente invisibilizado à medida que é vislumbrado como mero receptáculo de uma entidade mais complexa, a alma.

O Classicismo, surgido entre os séculos XVII e XVIII, é um período eminentemente marcado pela busca de uma epistémê, ou seja, de “um sistema articulado de uma máthêsis, de uma taxonomia e de uma análise genética” (FOUCAULT, 1966, p. 89, grifo nosso). Em outras palavras, surge na Época Clássica uma profusão de linguagens, de nomenclaturas destinadas a sistematizar os reinos dos seres vivos, especialmente vegetais, e a singularizá-los como entidade única e que carrega em seu bojo uma complexidade. Nesse contexto, o ser humano se apresenta como o esquadrinhador da realidade, ou seja, o ordenador do universo, recorrendo para isso ao discurso científico, organizando, classificando e categorizando as coisas a partir da identificação de características comuns a elas.

Contudo, o homem não se auto-esquadrinhava. Não era ainda sujeito e objeto do conhecimento. Assiste-se a uma grande valorização da botânica, exatamente pelo fato de que a generalização e a categorização de espécies vegetais eram mais fáceis. Por outro lado, em virtude da complexidade dos corpos animais, a classificação dos mesmos era claramente artificial, preocupada apenas em registrar linhas, superfícies, formas e relevos. Podemos até afirmar que os corpos passam por um processo de invisibilização, onde o classificador se preocupa apenas em registrar quatro elementos:

[...] observar é, pois, contentar-se com ver. Ver sistematicamente pouca coisa [...]. As representações visuais vão enfim oferecer à história natural o que constitui seu objeto próprio [...]. Esse objeto é a extensão de que são constituídos os seres da natureza – extensão que pode ser afetada por quatro variáveis. E somente por quatro variáveis: forma dos elementos, quantidade desses elementos, maneira como eles se distribuem no espaço uns em relação aos outros, grandeza relativa de cada um (FOUCAULT, 1966, p. 148).

Finalmente, na modernidade, o paradigma muda: o homem torna-se medida de todas as coisas, sujeito e, ao mesmo tempo, objeto do seu próprio conhecimento. Ao transferir o homem para o centro da prática discursiva, a representação categorizadora e conceitual dos seres vivos é reordenada, obedecendo a este novo quadro sistêmico. Nesse sentido, o homem deixa de ser um mero esquadrinhador dos elementos constitutivos do universo, passando a ser estudado como entidade absolutamente distinta do resto dos seres vivos, medida e referencial no processo de percepção e captação de sentidos dos outros seres vivos. Para Foucault, a entrada do homem na história se dá neste período. Esta mudança epistemológica é conhecida por “analítica de finitude do homem”, ou seja, sendo o homem finito, esta finitude se manifesta no corpo que, a partir de agora, pode ser analisado, dissecado, esquadrinhado.

A ruptura com o discurso renascentista, metafísico por natureza, permitiu o advento da modernidade em que tudo o que vem a ser antagônico à realidade metafísica passa a ser valorizado, e em primeiro lugar, o corpo finito. De fato, com o descobrimento da morte, descortina-se um novo momento alicerçado no tempo e, conseqüentemente, na história. O corpo torna-se o ponto de apoio na produção de múltiplos saberes científicos na Modernidade. Em outras palavras, com a ampliação da espacialidade discursiva, surge uma profusão de verdades concernentes ao corpo humano, inclusive na literatura positivista. Em oposição à Renascença, onde o corpo era minimamente visibilizado em prol do elemento anímico, ou ainda, no Classicismo, onde o corpo era restringido a mera superfície, no discurso modernista ele ocupa um espaço central na produção de discursos científicos pretensamente neutros.

A microfísica forjada por Foucault torna-se profícua na análise de discursos em praticamente todos os domínios do conhecimento à medida que, para ele, a produção de verdades em relação ao corpo e a todos os elementos e fenômenos que o tocam está intimamente associada a discursos de poder. Sabemos que a religião moderna, o positivismo, com todos os seus tentáculos, deve ser apreendida como prática disciplinar que objetiva os corpos e os comportamentos aos quais ele configura, através do exame, da norma e da vigilância.

Nesse sentido, o positivismo deve ser encarado como um sistema ideológico que, ao mesmo tempo em que se opôs ao poder estabelecido, a saber, o eclesiástico, constituiu claras relações de força na tessitura do seu discurso científico pretensamente neutro, apropriando-se, assim, do corpo para se produzir o poder: “Não há constituição de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder” (FOUCAULT, 1975, p. 29-30).

Evidencia-se, desde já, que a microfísica do poder nos impõe uma leitura muita distinta dar forças de poder apreendidas por Karl Marx. Não se trata mais de enfatizar o processo de conflito entre duas grandes classes antagônicas, opressores e oprimidos, dominantes e dominados, proprietários e servos. Para Foucault o poder enquanto categoria social está dissolvido em todas as instâncias, estamentos e classes, sendo exercido por todos, seja em maior ou menor grau. Além disso, ele reconhece que o exercício do poder não se configura, exclusivamente nem de forma prioritária, na seara econômica. Seu estado diluído o faz presente em todos os âmbitos da vida humana: colégios, fábricas, casas, hospitais, corpos, almas.

A “morte de Deus” e, por consequência, a negação da idéia de eternidade, tem um papel importante na conflagração deste novo sistema chamado de “Modernidade”. De fato, para Foucault, a gênese da concepção de finitude da corporeidade humana está associada ao advento da Modernidade. Com ela, vimos também surgir uma série de conhecimentos que pretendem elencar, deliberar, explorar até o esgotamento uma gama infindável e sempre atualizável de patologias físicas e comportamentais, o que acabou culminando em uma produção vultosa de tipos discursivos, em seus mais variados significados e concepções a respeito do corpo, da psique e de seus aspectos. A tentativa de abalizar os limites fronteiriços entre sanidade e loucura é um exemplo modelar deste momento histórico em que as práticas configuradoras do comportamento e do corpo estão intimamente associadas. O que se nota, efetivamente, é uma profunda relação dialética a respeito da corporeidade: o discurso científico produz os mistérios do corpo a partir da cientifização do mesmo e, ao mesmo tempo, se debruça sobre o mesmo para desvendá-lo em seus pormenores. É o que Foucault (1979, p. 29) intitulou de “história efetiva”: A história “efetiva [...] lança seus olhares ao que está próximo: o corpo, o sistema nervoso, os alimentos e a digestão, as energias; ela perscruta as decadências”.

É óbvio que, junto ao surgimento destes novos conhecimentos a respeito do corpo humano que o conduziu a uma máxima e complexa significação, aparece também uma série de cientistas, psicólogos, terapeutas que elucidarão os “mistérios” profundos da corporeidade. O corpo converte-se em “superfície de inscrição para o poder, com a semiologia por instrumento” (FOUCAULT, 1975, p. 93) e passa a ser disputado acirradamente por experts dos mais variados domínios do conhecimento. A construção da política, nesse contexto, se dá a partir da dominação da corporeidade. Se Foucault questiona a idéia do poder opressor ser exercido por uma classe bem restrita, reconhecendo que tal práxis permeia todos os corpos e almas, não se pode negar que a Modernidade garante a um grupo condições sociais e econômicas de produzir com profusão e de forma sistêmica discursos visando controle, submissão e docilidade do nomos. Desse modo, esta disputa pela hegemonia na discursividade torna-se desigual à medida que os fatores privilegiaram uma classe em detrimento da maior parcela da sociedade.

É evidente que o sucesso do processo de metamorfoseamento de uma fala qualquer em um discurso plausível pressupõe o domínio do poder econômico. Desse modo, a construção de um discurso normalizador, utilitário e cristalizado envolve silenciar outras falas tão legítimas quanto o primeiro, mas incapaz de obter sucesso quanto o primeiro por carecer de instrumentos monopolizados pela burguesia.. Isso se dá não por meio de uma relação imparcial ou equânime, mas por meio do exercício do poder econômico. Aqui é o nascedouro de uma comunidade plausível, harmônica e estável. Desse modo, podemos conciliar a microfísica do poder com a macrofísica marxista.


Bibliografia

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1966.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1975.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Aristóteles

1) Por que a sabedoria é o conhecimento das causas?
Para Aristóteles a concepção de sabedoria está associada à capacidade do homem conhecer além dos sentidos, aquilo que de fato é em si. Isto não significa, entretanto, que o filósofo estagirita refuta a sensação como possível via do saber. Ele até reconhece que o amor aos sentidos é uma prova inconteste que o homem tende naturalmente para o conhecimento. Entretanto, ele reconhece suas limitações à medida que toda experiência é particular, não conseguindo, portanto, abarcar a gênese do ser. Nesse sentido, Aristóteles é categórico ao reconhecer a excelência da ciência e da arte na apreensão do conhecimento em detrimento dos que só possuem a experiência.
Portanto, podemos afirmar que a sabedoria em Aristóteles está associada ao conhecimento das causas, ou seja, ao universal. Nesse sentido, conhecer não se relaciona minimamente a executar bem as coisas, ou seja, a um utilitarismo ou a um modus operandi ideal, mas sim na capacidade de conceituar os seres, o que, evidentemente, exige a apreensão prévia de suas causas.


2) Por que a Filosofia pode ser considerada a ciência (ou o conhecimento) da verdade?
A Filosofia é classificada por Aristóteles como “ciência teorética”, em oposição ao campo da “prática”. Não se trata, contudo, de uma definição meramente utilitária, como se, de algum modo, o filósofo não tivesse condições instrumentais mínimas de discorrer a respeito de questões tidas como mais pragmáticas.
O que Aristóteles pretende com tal taxonomia é reconhecer a excelência da filosofia em relação ao conhecimento empírico. A Filosofia se ocuparia do ser em si mesmo, aquilo que de fato é. Se a experiência é naturalmente restrita a apreensão de dados voltados para a instauração do prazer e do bem-estar, a Filosofia, como as artes e as outras ciências, se ocupa dos “porquês”. Em outras palavras, a disciplina filosófica se insere no grupo das “disciplinas sapienciais” em razão de se debruçar sobre as causas primeiras e os princípios. Em suma, ao pretender apreender a verdade, esta caracterizada pela atemporalidade e ausência de circunstância, a Filosofia reduz o seu campo de atuação a questões eternas.


3) Por que Aristóteles considera a Filosofia a ciência (ou o conhecimento) do ser?
A Filosofia também pode ser compreendida como ciência do ser à medida que pretende tratar da causa daqueles que Aristóteles chamou de “seres eternos”. É evidente que não Aristóteles não está se referindo a seres míticos ou sobrenaturais, mas sim a “entidades puras”, não circunstanciais e atemporais, que trazem “em grau eminente a natureza que lhe é própria”. Desse modo, o conhecimento do ser se confunde com a apreensão da verdade. Conhecer a respeito da verdade é conhecer o ser enquanto ser estável. Elas são imutáveis e trazem em si a essência de outros entes. É nesse sentido que Aristóteles afirma que “elas não são verdadeiras apenas algumas vezes, e não existe uma causa ulterior do seu ser, mas elas são as causas do ser das outras coisas”. É isso que faz com que a Filosofia seja caracterizada por Aristóteles de “ciência teorética”, superior ao empirismo à medida que se ocupa de analisar a verdade enquanto realidade configurada no ser enquanto ser.


4) O que significa dizer que “o ser tem muitos significados”?
Evidencia-se na afirmação o caráter pluralista do termo “ser” no pensamento aristotélico. Se por um lado o ser designa essência, de outro pode indicar atributo qualificativo ou quantitativo deste mesmo “ser essência”. Nesse sentido, Aristóteles apresenta duas classes de atributos: o principal significado designaria a substância do ser e o segundo qualificativos e quantitativos. Evidencia-se aqui a distinção entre ato e potência, ou seja, entre o que é em si mesmo e o que poderá a vir a ser. Os atos são em si mesmo, chamados por Aristóteles de “formas puras”. A potência, por sua vez, se constrói dentro de categorias atributivas (ação, relação, quantidade). É evidente que o ato, como modo de ser, é ontologicamente superior a potência.

Direito das Obrigações

1. João vendeu seu cavalo tropeiro por R$ 10.000,00. Acordou-se que João deveria entregar o animal no haras de José no dia 10 de maio de 2009. Porém, na data aprazada, João, em razão de problemas pessoais, adiou a entrega para o dia seguinte. Todavia, naquela noite, o cavalo foi picado por uma cobra e morreu. Considerando estes fatos, o que José poderá fazer? E João, como procederá frente ao infortúnio?

É de suma importância levantar, primeiramente, alguns elementos que interferem diretamente na análise do caso supramencionado. De fato, os efeitos da relação contratual celebrada por João e José está subordinada a três fatores: a perda da coisa (se total ou parcial), o momento do acontecimento do caso fortuito (se antes ou depois da data combinada) e o grau de culpa.

A perda da coisa, ou seja, do cavalo é total. Afinal de contas, o cavalo morreu. Quanto ao momento do ocorrido, ele se dá após a data combinada. Se o cavalo tivesse morrido antes da data combinada, ou seja, do vencimento da obrigação, João teria que, simplesmente, devolver a quantia concernente ao valor do cavalo.


Entretanto, é evidente que João foi displicente ao não ter entregue a coisa no dia combinado. De fato, o protelamento da entrega da coisa se deu em razão de “problemas pessoais”, o que deixa implícito não se tratar de impedimento resultante de força maior. Em razão disso, deverá ser responsabilizado pela morosidade, conforme reza o artigo 399 do Código Civil brasileiro: “O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso”.


Entretanto, vale a pena observar que estamos tecendo comentários bastante questionáveis em virtude de desconhecermos os fatos que nos permita analisar objetivamente a razão que levou João a não entregar o animal no prazo estipulado. De fato, se ele tiver sido vítima de um caso fortuito ou de força maior apenas devolveria o montante do valor do cavalo e a obrigação estaria dissolvida. Cabe a João provar nesse caso, provar isenção de culpa ou, ainda, que a picada e posterior morte do animal ocorreria mesmo se estivesse já sob a guarda de José.


2. Caio e Tício são co-proprietários do semovente Faísca, cada qual detendo 30% e 70% do valor do mesmo. Ambos comprometem-se a vender o animal a Mélvio. Contudo, o ato de entrega do material é efetivado por Caio e, desta forma, acaba recebendo o valor total ajustado. O que Tício deverá fazer frente ao caso em tela? E Mélvio? Fundamente.


A relação entre Caio e Tício se classifica dentro da perspectiva da solidariedade, que deve ser compreendida como uma relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns. Em outras palavras, trata-se de um vínculo recíproco de pessoas. No caso em questão, trata-se de uma obrigação solidária caracterizada pela pluralidade de credores, o que conhecemos por solidariedade ativa.


Reza o Código Civil pátrio que cada um dos credores solidários tem direito a exigir do devedor o cumprimento da prestação por inteiro: “Cada um dos credores solidários tem o direito a exigir do devedor o cumprimento da prestação por inteiro. Se concorrerem na mesma obrigação dois ou mais credores, cada um com direito a dívida toda, qualquer deles pode demandar o pagamento, todo e por inteiro” (art. 267). Sendo assim, o ato de entrega do semovente Faísca efetuado por Caio a Mélvio e o recebimento do valor do bem não fere o ordenamento jurídico brasileiro. O artigo 260, inciso II do CC ressalta a possibilidade do devedor extinguir a obrigação ao pagar apenas para um credor o valor total da obrigação. Assim fica evidenciado que nem Caio nem Mélvio pode ser responsabilizado pela entrega da coisa ou do montante em dinheiro.


A outra questão que se apresenta é a situação de Tício, que detém o direito de 70% do valor total do semovente. O CC ampara o co-proprietário no caso de outro credor ter recebido a dívida integralmente: “Se um só dos credores receber a prestação por inteiro, a cada um dos outros assistirá o direito de exigir dele em dinheiro a parte que lhe caiba no total” (art. 261). Nesse sentido, o direito de Tício está devidamente resguardado.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Taxa SELIC: Definição

As taxas de juros cobradas pelo mercado são balizadas pela taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, conhecida como taxa Selic. Trata-se de uma taxa média calculada diariamente pelo volume das transações financeiras ocorridas naquele dia. Em outras palavras, é uma taxa não fixada, usada como referencial pela política monetária. Ela é obtida “mediante o cálculo da taxa média ponderada e ajustada das operações de financiamento por um dia, lastreadas em títulos públicos federais e cursadas no referido sistema ou em câmaras de compensação e liquidação de ativos, na forma de operações compromissadas” (BRASIL. BANCO CENTRAL).Observa-se, então, que a Selic se origina de taxas de juros efetivamente observadas no mercado. Ela é extremamente importante no âmbito bancário pois funciona como taxa diária de financiamento. O COPOM (Comitê de Política Monetária) é responsável por sua divulgação e seu cálculo se dá após o encerramento das operações, em processo noturno.


Bibliografia
BRASIL. BANCO CENTRAL. Taxa Selic. Disponível em:<http://www.bcb.gov.br/?SELICTAXA>. Acesso em: 29 set. 2009.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Compaixão e Fragilidade Humanas: a Pedagogia da Queda em "O Padre"


O filme inglês “Priest” (“O Padre”), dirigido por Antonia Bird e lançado em 1994, foi recebido pela crítica como uma denúncia às mazelas e incoerências presentes no seio da Igreja. Alguns, inclusive, catalogaram-no como “filme gay” ou “ancticlerical”. A obra, com certa similaridade ao estilo almodovariano, aborda, de fato, temas picantes que já se tornaram clássicos para os cineastas moderninhos quando traz para a telona como estrela principal a Igreja Católica: homossexualismo, pedofilia, incesto, hipocrisia religiosa e corrupção econômica.


A obra trata da história do Padre Greg (Linus Roache) que, desejoso de trabalhar junto aos pobres, é enviado pelo bispo a uma paróquia em Liverpool. Não demora muito para que ele descubra que o pároco, Padre Matthew (Tom Wilkinson), não cumpre o celibato, mantendo um relacionamento estável com uma mulher. Este é apenas o primeiro fator que fará com que Greg entre em conflito e questione algumas regras da Igreja. Em seguida, Greg se revela homossexual, frequentando bares gays e se apaixonando por um rapaz (Robert Carlyle). O filme aborda, ainda, o sigilo da confissão ao apresentar a história de uma menina de 14 anos que, durante o sacramento da penitência, lhe conta que sofre abusos por parte do pai. Dividido entre sua vocação e sua sexualidade, entre as regras da Igreja e os problemas que testemunha, Greg teme ter sua fé abalada.


Estou convencido que esse tipo de leitura não toca efetivamente nos pontos nevrálgicos tratados pela cineasta. Não pretendo, com essa afirmação, negar que a obra apresente questões controversas envolvendo a Igreja. Seria uma estupidez de minha parte dizer tal coisa. Penso, inclusive, que muitos dos problemas alí elencados, como a questão sexual dos padres na trama, ainda estão sendo tratadas com cautela e parcimônia pela Igreja. Isso ficou evidente na 47ª Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ocorrida em maio desse ano, que teve por tema “A formação presbiteral: desafios e diretrizes”. No curso dos debates, o homossexualismo e o casamento de presbíteros chegaram a ser abordados, o que manifesta certa sensibilidade por parte dos bispos brasileiros em enfrentar questões humanas. Na ocasião do encerramento do evento, Dom Luis Soares Vieira, vice-presidente da CNBB, chegou a declarar que homossexuais podem ser padres, desde que guardem a castidade, exigência também feita aos heterossexuais. Trata-se, certamente, de um progresso para uma instituição que nem sempre conseguiu ou considerou pertinente discutir com objetividade assuntos espinhosos, preferindo invisibilizá-los ou simplesmente taxá-los de práticas imorais ou desviantes. Dirigindo os olhos e ouvidos à realidade humana dos seus próprios pastores, a Igreja reafirma sua beleza sobrenatural, configurando-se mais plenamente ao rosto de seu esposo, Cristo Jesus, que, frente às misérias humanas, “tomou sobre si nossas enfermidades e carregou as nossas dores” (Is 53, 4).


Mas, afinal de contas, qual a relação entre as discussões travadas na 47ª Assembléia Geral da CNBB e o filme “O padre”? Penso que ambos se tocam no quesito humanidade. Ao invés de elevarem os padres a uma categoria de deuses, titãs ou seres predestinados desde o seio materno à pureza e à santidade, estes passam a ser tratados nos discursos episcopal e cinematográfico como homens em toda a sua plenitude, passíveis, portanto, de erros e incoerências. Entretanto, o foco em ambos os casos não recai sob o pecado ou a incapacidade do ser humano em alcançar certo nível de integridade, mas da possibilidade do homem em aprender com seus próprios erros. Nesse contexto, tornar-se mais humano requer humildade, o que implica experimentar suas próprias incongruências.


Etimologicamente “humildade” vem de humus e significa “terra”. Ser humilde, portanto, significa reconhecer sua condição humana. Semelhante ao bispo de Hipona, Santo Agostinho, este é o caminho que o jovem Padre Greg tem que trilhar para se conhecer profundamente e exercer a compaixão para com os seus semelhantes, tornando-se, assim, um verdadeiro pastor, pobre entre os pobres. No início do filme, Greg é arrogante, extremamente seguro de sua vocação e de suas habilidades como líder carismático. Como porta-voz da verdade, exige que o pároco abandone a concubina; questiona seus sermões considerados excessivamente liberais (“Não somos assistentes sociais. Somos padres”) e políticos (“Parecia que eu estava em um comício do Partido Trabalhista”); defende a retomada de um discurso ortodoxo centrado no pecado individual, evitando justificar ou minimizar a transgressão moral devido a situação de indignidade social vivida pelos fiéis (“Você espera menos do povo por ser pobre”).


O velho Matthew, presbítero há várias décadas, é a típica figura do homem que, frustrado com as leis disciplinares da Igreja, vive em concubinato. Talvez seja por essa condição de fragilidade extrema é que tenha o coração de um pastor. Exerce a comapixão por se sentir necessitado da compaixão dos outros. Não se alça ao posto de juiz por esperar indulgência do seu povo. É pastor, mas se rebaixa ao nível de povo que espera do seu Deus uma libertação de toda espécie de escravidão, inclusive aquela que, revestida de elucubrações clericais, passe por justa e imutável devido a sua condição divina. Ao contrário do jovem padre, não usa o púlpito; prefere transitar no corredor da igreja durante a homilia, sentindo-se assim mais próximo de sua grei; a missa dá espaço a elementos simbólicos heterodoxos – quenas de bambu e vozes estrangeiras, provavelmente de “selvagens” bolivianos ou peruanos – bem diferente da faustosa liturgia romana, com seus órgãos e ritos barrocos triunfalistas.


A descoberta da homossexualidade de Greg pela mídia faz com que ele passe por uma verdadeira kenosis: tenta se matar; é expulso da diocese pelo bispo; interna-se em uma casa de reabilitação, onde é taxado por um padre cisudo e amante do latim como “pústula no corpo da Igreja prestes a soltar pus”. Recebe o apoio de Matthew, o velho padre fornicador. Torna-se humilde ao observar em si próprio o atributo comum a todos os seres humanos: a instabilidade. Converte-se em cúmplice da humanidade, reconhecendo-se à imagem e semelhança dos degredados filhos de Eva. Passa a vislumbrar a Cidade dos Homens como reflexo, mesmo que empalidecido, da Cidade de Deus. Transpõe, finalmente, as fronteiras da justiça e passa a viver pacificamente no terreno da misericórdia, reconciliado consigo mesmo e com o mundo.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ética no Direito: Questões Revelantes

1. Discorra sobre o papel da ética na relação advogado versus cliente e advogado versus OAB.

Toda conduta do advogado, seja em relação ao cliente ou frente a própria OAB é regulada pelo Estatuto do Advogado (Lei nº 8906/2004) e pela legislação correlata ( Regimento Interno do Tribunal de Ética e Disciplina, Código de Ética e Provimentos do Conselho Federal). Nesse sentido, a decisão em adotar determinado comportamento em detrimento de outro deve ser tomada dentro de critérios objetivos.
Quanto ao cliente, é seu dever avaliar deixar o cliente a par dos riscos de perda na lide, contratar honorários por escrito, prevendo detalhadamente o valor e o objeto do contrato e estabelecendo honorários que respeitem os limites legais e determinados pela OAB. Também é tarefa do advogado prestar contas ao cliente quanto ao curso da ação, mantendo-a em sigilo absoluto, inclusive o nome do cliente. É seu dever informar ao cliente quanto ao teor das conversas havidas com o advogado da parte contrária. O mais importante é o advogado nortear o seu comportamento pelos princípios de honestidade e boa fé.
A relação entre o advogado e a OAB pressupõe certa docilidade aos atos normativos emanados desta, sabendo que toda decisão da OAB,seja de natureza positiva ou negativa, visa contribuir para o prestígio da classe, fazendo com que o advogado se torne merecedor de respeito na sociedade. Isto exige por parte do advogado uma postura ilibada quanto a sua imagem profissional, evitando macular a todo custo a práxis advocatícia e a seccional que o congrega.


2. Doutor João Adami, famoso advogado, fora convidado a participar de programa de televisão, sendo que passou a responder perguntas dos telespectadores sobre demandas jurídicas em geral. Nesse mesmo ato, o referido advogado teceu duras críticas à imagem da seccional da OAB do seu estado. Diga, à luz do Estatuto, se houve violação à ética e, caso positivo, quais sanções poderiam ser aplicáveis ao caso.

Mesmo reconhecendo a popularidade de advogados oferecendo verdadeiras consultas jurídicas em veículos de comunicação social no país, o Código de Ética é bastante claro ao proibir tal prática quando adotada habitualmente e com fins de promoção profissional (art. 33). Ora, nenhum profissional se prontifica a tecer comentários concernentes à seara em que atua sem a intenção de se promover. Dentro desse contexto, poderíamos afirmar, prematuramente, que a postura do Dr. João Adami se configuraria em violação à ética profissional.
Entretanto, o enunciado da questão não explicita se tais consultas são respondidas “com habitualidade”. Assim sendo, reconhecendo que o advogado limitou-se à análise e discussão de temas jurídicos de interesse geral e não se ofereceu a dar consultoria habitual no rádio ou na televisão, não se evidenciaria em violação ética, mesmo que tivesse o intuito de se promover profissionalmente.
Contudo, no momento em que o advogado tece comentários pouco elogiosos à seccional da OAB do seu estado, configura-se em quebra de ética, já que fere o inciso III do Código de Ética, por “comprometer a dignidade da profissão e da instituição que o congrega”.


3. Uma grande banca de advogados do estado de Tocantins tem publicado anúncios publicitários com os seguintes dizeres: “BRASCOM – Consultoria Jurídica em Tribunais Superiores”. Sabe-se que os advogados de tal escritório têm sido vistos constantemente nos corredores dos tribunais superiores em Brasília. Contudo, muitos de seus membros não possuem OAB Suplementar. Caso você fosse conselheiro da Comissão de Ética da OAB no DF, tomando conhecimento do fato, como procederia.

Como conselheiro da Comissão de Ética da OAB/DF seria impelido a denunciar tal banca de advogados em questão por infringir a legislação em dois aspectos: o descumprimento dos requisitos na promoção publicitária e a carência de OAB Suplementar.
Apesar de o Código de Ética permitir o anúncio publicitário de serviços advocatícios, veda formalmente a adoção de nome fantasia (art. 29). Tal postura seria o suficiente para solicitar a instauração de processo disciplinar conforme regulado pelos artigos 51 a 61 do Código supramencionado.
Quanto a OAB Suplementar, o artigo 26 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB dispõe que “o advogado fica dispensado de comunicar o exercício eventual da profissão, até o total de cinco causas por ano, acima do qual obriga-se à inscrição suplementar”. Nesse contexto, o fato de muitos membros da banca não possuírem a OAB Suplementar se configura em descumprimento da legislação em vigor, o que também levaria a instauração de processo disciplinar.


4. Um grande banco de abrangência nacional tem recebido honorários sucumbenciais nos processos judiciais em próprio êxito, não repassando tais valores a quem de direito. Também é comum a prática de jornada superior a 20 horas semanais e o não pagamento de horas extras. Nesse caso, quais violações estão patentes e quais medidas poderiam ser adotadas para sanar o problema?

O artigo 40 do Código de Ética é categórico ao garantir ao advogado o valor integral dos honorários sucumbenciais: “a verba honorária decorrente da sucumbência pertence ao advogado”. A Lei 8.906/94 (Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB) também dispõe que “a prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência (art. 22).
Quanto a carga horária, o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB determina em seu artigo 20 que “a jornada de trabalho do advogado empregado, no exercício da profissão, não poderá exceder a duração diária de quatro horas contínuas e a de vinte horas semanais”.
Evidencia-se, portanto, duas violações à legislação em vigor. O modo de sanar o problema concernente à sucumbência é fazer valer o que dispõe a Lei 8.9096, garantindo ao advogado da parte vencedora o valor estipulado pelo magistrado. Quanto a carga horária, a lei supramencionada não deixa lacunas. No seu artigo 20, parágrafo 2°, o legislador determina que “as horas trabalhadas que excederem a jornada normal são remuneradas por um adicional não inferior a cem por cento sobre o valor da hora normal, mesmo havendo contrato escrito”.


5. Na relação advogado e cliente, no caso de quebra da relação de confiança, caberá sempre no término do contrato de prestação de serviços advocatícios? E os honorários referentes aos serviços já realizados? Como estes serão pagos?

Caso o contrato de prestação de serviços advocatícios seja rescindido por vontade do cliente, este não ficará desobrigado de efetuar os pagamentos concernentes às verbas honorárias , bem como os eventuais valores de sucumbência, que, segundo o artigo 14 do Código de Ética, serão calculados “proporcionalmente, em face do serviço efetivamente prestado”. É a proporcionalidade que garante senso de justiça ao advogado que, durante certo tempo, prestou serviços ao cliente. É o magistrado quem determina o valor devido ao advogado a partir de critérios razoáveis.


6. A responsabilidade civil do advogado vincula seu escritório e seus bens até qual ponto? Os atos de terceiros subcontratados e prepostos gerarão dever indenizatório no caso de danos ao cliente?

A Lei n.º 8.906/94 estabelece em seu artigo 32 que o advogado é responsável pelos atos que, no exercício da profissão, praticar com dolo ou culpa. As regras de proteção do Código de Defesa do Consumidor são aplicadas integralmente aos contratos de prestação de serviços advocatícios. Isto significa que a indenização abarca o valor das perdas do cliente. A responsabilidade civil será sempre imputada ao advogado que praticou o ato danoso, não podendo ser estendida à sociedade de advogados de que participe.
Quanto à indenização, ela é medida “pela extensão do dano ocorrido, podendo o juiz reduzir equitativamente o quantum debeatur se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano perpetrado” (ROCHA, 2006, p. 248)


7. Seria possível afirmar que a ética é individual e a moral social?

Primeiramente é importante reconhecer que, não raramente, os meios de comunicação social têm recorrido às expressões “ética” e “moral” quase sempre de forma indiscriminada. Essa confusão terminológica se justifica pelo fato de que os marcos fronteiriços entre os signos e os significados que aqueles termos encerram não foram ainda devidamente delineados. Mesmo no âmbito da Filosofia é possível identificar autores que concebem a ética como sinônimo de mora (ABBAGNANO,1998, p. 682; JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 187). Em todo caso, ética e moral não se confundem, mas se complementam.
A moral seria a norma de vida em sociedade, o habitus, as formas de resolver os problemas do cotidiano, sendo, por isso, condicionada pelo tempo e pelo espaço. Trata-se, portanto, de uma normativa cultural, destinada a assegurar um estado harmônico nas relações entre os indivíduos.
A ética, por sua vez, se vincula a princípios que, naturalmente, conduziria o homem ao bem, ou seja, a felicidade. Refere-se a toda atitude e cuidado que tenho com o outro no sentido de manter um estado de equilíbrio. Foucault entende a ética como um cuidar de si mesmo, o que abarcaria um conjunto de atitudes vinculadas a um estilo de vida e não a uma visão de interdição.
Desse modo concordamos com a frase de que “a ética é individual e a moral social”. Se a moral se ocupa de construir mecanismos de controle social, a ética se ocupa em estabelecer um estilo de vida em que “o acento está colocado sobre a relação consigo mesmo que permite não se deixar levar pelos apetites e prazeres” ( FOUCAULT, 2004, p. 215). A ética, contudo, não está dissociada de uma preocupação com a coletividade. De fato, se o indivíduo cuida de si, controlando os seus instintos egoístas, acaba cuidando do grupo, chegando, inclusive, a modificar as normas onde a moral está assentada.


Bibliografia

FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 5.

MORAL. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 682.

ÉTICA. In: JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996. p. 93.

ÉTICA. In:______. ______. ______. ______. p. 187.

ROCHA, Rafael da Silva. A responsabilidade civil do advogado. Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, n. 18, p. 239-252, 2006.

A Ética do Advogado


1) Como pode ser feita a publicidade do advogado?
O Provimento n° 94/2000 dispõe a respeito das situações permitidas de divulgação publicitária dos serviços advocatícios. O art.1º do provimento supramencionado afirma que a publicidade informativa é permitida, ou seja, aquela modalidade que tem por fim levar ao público em geral, dados e informações verdadeiras a respeitos dos serviços do profissional advogado. O ato em questão elenca as seis modalidades possíveis e lícitas da prática de publicidade: 1) Cartões de visita e de apresentação do escritório; 2) Placa identificativa do escritório, afixada no local onde se encontra instalado; 3) Anúncio do escritório em listas de telefone e análogas;4) Comunicação de mudança de endereço e de alteração de outros dados de identificação do escritório nos diversos meios de comunicação escrita, assim como por meio de mala-direta aos colegas e aos clientes cadastrados; 5) Menção da condição de advogado e, se for o caso, do ramo de atuação, em anuários profissionais, nacionais ou estrangeiros;6) Divulgação das informações objetivas, relativas ao advogado ou à sociedade de advogados, com modicidade, nos meios de comunicação escrita e eletrônica.


2) Comente a citação retirada da obra de José Renato Nalini: “Vive-se um momento trágico nas carreiras jurídicas. Há um sentimento disseminado de que existe uma irreconciliável divisão entre o legal e o moral. E isso elimina a fé pública na lei. Os advogados parecem desdenhar essa percepção popular e reforçam a impressão de que a ética e a moral não têm lugar na lei”.
O que se pode aventar a partir da fala de Nalini é que o advogado pode atuar fora dos limites da lei que se materializa no texto do legislador. Isto está intimamente associada à percepção hodierna de que nenhum texto é universalizante, ou seja, capaz de abarcar todas as nuances da práxis social. Em outras palavras, todo discurso, seja ele dotado de caráter legal ou não é polimorfo, passível de infinitas interpretações, deixando sempre lacunas.É nestes espaços vazios e ociosos que muitos advogados se enveredam. Negando o sentido histórico dado ao texto legal, o advogado pode, conscientemente, negar força e legitimidade a determinado direito ou prática social em virtude de uma percepção extremamente burocratizada do ordenamento jurídico, fazendo com que a sua atuação o converta em instrumentalizador da injustiça instittucionalizada. Neste contexto, a justiça que o Direito pretende alcançar sucumbe aos pormenores e entrelinhas dos codex.


3) Como deve ser a relação do advogado com seus clientes?
O Capítulo II do Código de Ética e Disciplina da OAB norteia toda a relação entre o advogado e o seu cliente. Em linhas gerais podemos afirmar que os dispositivos podem ser sintetizados em dois princípios: Seriedade: diálogo franco e objetivo com os clientes em relação à sua pretensão; Honestidade: prestação de contas feita regularmente de todos os atos praticados em seu nome.


4) Como deve ser a relação do advogado com seus colegas advogados, com os juizes, promotores e demais funcionários dos Fóruns e Tribunais?
A urbanidade é princípio basilar no tratamento com qualquer ser humano. É o que também estabelecer o Código de Ética e Disciplina da OAB que tem por capítulo VI o título “Do dever de urbanidade”. Os artigos 44 a 46 do ordenamento em questão elenca as atitudes práticas do advogado no exercício da urbanidade: a) tratar o público, os colegas, as autoridades e os funcionários do Juízo com respeito, discrição e independência, exigindo igual tratamento e zelando pelas prerrogativas a que tem direito; b) emprego de linguagem escorreita e polida; c) esmero, zelo e disciplina na execução dos serviços


5) O que é o advogado faltoso? Explique as punições previstas no Estatuto da OAB.
O advogado faltoso é aquele que descumpre o que é estabelecido pelo Estatuto da OAB e pelo Código de Ética em vigor. Em outras palavras, o advogado que pratica infração disciplinar é faltoso, sendo portanto, passível de sofrer sanção. O Estatuto prevê quatro tipos de sanção: censura; suspensão; exclusão; multa.


6) O Advogado deveria se submeter a reciclagem e atualizações para atuar na sua profissão?
Sim, à medida que o ordenamento jurídico brasileiro se altera freqüentemente, além do fato de reconhecer que a interpretação da legislação nunca se cristaliza.


7) Constitui falta ética prestar consultoria e aconselhamentos para comunidades carentes?
É evidente que não. A consultoria a pessoas menos abastados e excluídas da sociedade de consumo são manifestações concretas de solidariedade, o que transmite não apenas uma imagem positiva para o exercício para a profissão, mas se converte em instrumento de mobilidade social, de recuperação ou mesmo de estabelecimento de cidadania para grupos sociais que, não raramente, são invisibilizados pelo poder público, inclusive pelo Judiciário.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A filosofia política do século XX foi forjada dentro de uma concepção idealizada de sociedade. Uma sociedade ordenada, tendendo naturalmente para o progresso, projeto, sem dúvida positivista. Tal ordenamento harmônico seria resultante de um Estado nascido a partir do contrato social. É no seu seio desta máquina social que o cidadão, abrindo mão da própria força, garante o respeito de seus direitos.
As duas grandes guerras, o nazismo, o fascismo, o extermínio estúpido de milhões de seres humanos fissuram de modo absoluto e inquestionável a idéia de perenidade do estado de direito. Nota-se, de fato, a precariedade de tal fenômeno social, o que, evidentemente, cria desconforto à própria filosofia. Afinal de contas, se as sociedades ocidentais modernas não se movem, na prática, dentro do conceito de Estado de Direito, o que se esconde por detrás dos seus tentáculos? Como ficam resguardados os direitos e garantias individuais e fundamentais da pessoa humana? Surge no ordenamento jurídicos das grandes potências a figura jurídica do “estado de exceção”. É evidente que, frente a uma sociedade assombrada por homens-bombas, relativizar direitos fundamentais em nome da segurança nacional parece se converter em uma medida bastante plausível. O “estado de exceção”, que, de fato, era exceção, torna-se regra, abrindo espaço para o estabelecimento de um absolutismo perpetrado por uma burocracia “democrata”.

Em um primeiro momento parece que nos deparamos com um confronto simplesmente pragmático, uma mera alternativa por parte do governante em optar por um instrumento jurídico em detrimento de outro. Entretanto, o que se vislumbra é o império da ilicitude sob o legal. Legalidade associada ao estabelecimento de um ato normativo emanado de autoridade competente, representante direta ou indireta do povo. O “estado de exceção” é uma realidade que se desenvolveu às margens do Direito, informalmente, fora do texto, mas que, nem por isso, pode ser relegada.

Afinal de contas, como poderíamos negar a sua eficácia no curso do século XX e, até mesmo no recente governo Bush? Seria possível invisibilizar os métodos de interrogatório adotados no Campo de Detenção da Baía de Guantánamo, por exemplo? Creio que seria muito dificultoso obter sucesso nessa empreitada.

O fato é que discursos são produzidos com profusão por atores em todas as searas. Estas falas se correlacionam, se acotovelam, ferem umas às outras, impõem limites de atuação entre si, se harmonizam, se conflituam, se complementam. Falar é estabelecer domínios de poder, construir verdades e, ao mesmo tempo, dentro de uma perspectiva dialética, produzir falácias em relação a outros atores. Voltando ao “estado de exceção”, sua primazia frente ao texto constitucional torna evidente que o processo valorativo de um discurso frente a outro não está necessariamente associado a sua pertença ou não ao campo jurídico.

O poder, de fato, é exercido a partir de fenômenos que extrapolam os marcos fronteiriços da lei, o que, de certo modo, torna a filosofia política “sem chão”. Afinal de contas, em que nos apoiar se toda a nossa segurança institucional está pulverizada? Se o conceito de democracia é tão precário quanto o da beleza? Se o Estado é seduzido por um emaranhado de discursos perpetrados fora da arena oficial de discussão construída por ele mesmo?

Questões Éticas

1) Levando em consideração que ética é a ciência que estuda o comportamento humano, ou seja, tem como objeto o próprio homem. O que é uma conduta ética para você?
Primeiramente é importante afirmar que nem toda concepção ética é boa ou, ainda, aprovada socialmente. A ética não se ocupa em apontar princípios, normas ou regras a serem seguidas pela coletividade. Esta é função da moral. Recentemente analisei em outra disciplina a canção “Metamorfose Ambulante”, de autoria do Raul Seixas. Nota-se que a canção supramencionada se constrói a partir do confronto entre dois fenômenos sociais: um nomos totalizante, cristalizado e plausível, e uma ética singular, anômica, instável e individual do poeta.
Conduta ética é toda práxis social que é plausível, significativa àquele que a realiza, independentemente de seu grau de comprometimento com a moral vigente. Esta é, efetivamente, a concepção etimológica de ética. Particularmente acredito que confundimos terrivelmente a ética como manifestação coletiva, o que é um equívoco. Falar, por exemplo, em Código de Ética, é uma afronta à percepção originária do fenômeno. De fato, raramente a ética se constitui em realidade coletiva. Este é um atributo da moral.
2) A base da educação ética deve ser ministrada no lar ou na escola?
Há um equívoco na pergunta. A ética não é ministrada formalmente em lugar nenhum. Ela perpassa toda práxis social, independentemente da intencionalidade dos atores e das instituições envolvidas. É evidente que a escola, bem como o espaço doméstico, tem uma missão social, coletiva, oficial importante, de moldar, modular, amalgamar os instintos, a libido, o corpo, os prazeres, os olhares, gestos e as opiniões a partir de um modelo universalizante, pretensamente estável e atemporal. Neste sentido, muito mais do que exercer um papel ético, fazendo com que o “[...] o espaço do mundo [torne-se] habitável para o homem”. (ALMEIDA, 2002, p. 17), estes espaços atuam na docilização do corpo e da criatividade humanas, tornando-os, frequentemente, reféns de uma moral velhaca, cristalizada e pretensamente unívoca.

3) Representa infração ética a contratação de um profissional ou outro colega para a elaboração de trabalhos científicos, como os trabalhos exigidos no decorrer do curso e o trabalho de conclusão de curso (monografia)?
Se nos reduzirmos à concepção etimológica, nenhum estudante de direito cometeria infração ética no caso supramencionado. O êthos está diretamente associado à capacidade de construir significado ao seu modus vivendi. Dentro desta perspectiva e por mais absurdo que possa parecer, é admissível e compreensível que certos indivíduos se apropriem da fala do outro e se promovam desse modo. É exatamente a repulsa à naturalização de certas práticas que urge a necessidade de se repetir continuamente certos atos considerados bons e louváveis que, com o tempo, se tornarão modelos, padrões. Surge, deste repetição, o éthos, a moral.

4) Para você, qual a postura que o professor deve adotar em sala de aula com seus alunos? Analise tanto a forma dele trabalhar a disciplina com a turma, quanto a forma de relacionamento pessoal com os seus alunos, ou seja, como vocês gostariam de ser tratados pelos seus professores.
É lamentável que professores se apropriem de forma neurótica de instrumentos legítimos para controlarem a turma. Um caso típico é a tal lista de presença. A evocação de tal mecanismo evidencia que as relações entre o docente e o discente se constrói não a partir de critérios objetivos de cultivo do conhecimento, mas de mecanismos marginais que alcançam status e primazia, passando a nortear todas as relações entre estes atores. Tal exemplo simplório evidencia a tentativa de se estabelecer um clima de temor respeituoso entre os que detém o poder de construir significados e os destituídos de qualquer possibilidade discursiva, tratados como verdadeiras tábulas rasas.

5) No mesmo sentido da questão anterior, qual a postura que o estudante deve ter em relação aos seus estudos, aos seus colegas e aos seus professores?
Acredito que o respeito às diferenças deve nortear a relação em qualquer espaço. No caso da Universidade, isso deve ser muito mais salientado, em virtude da sua missão que, em síntese, é de construir e reconstruir discursos.

6) Como você espera sair da Universidade?
Espero que os anos, além das rugas, me confronte com situações e pessoas que me garantam uma rica aprendizagem no sentido de aprender a amar os outros pelo que temos em comum, e não por nossas singularidades.