Como de costume, a Igreja Católica, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), propôs, no início da quaresma deste ano, um tema que servisse de reflexão aos seus fiéis e a todos os homens de boa vontade. Para esse ano o tema da Campanha da Fraternidade (CF) foi segurança pública, tendo como lema “A paz é fruto da justiça”. Trata-se, sem dúvida, de um assunto extremamente propício e imperioso para uma nação alarmada com os mais altos índices de violência em sua história a qual tem vitimado cidadãos de todas as classes sociais.
Além disso, vale destacar que a recomendação da Igreja é analisar o problema da segurança pública brasileira dentro de uma perspectiva social e não criminológica, evitando, assim, apontar soluções simplistas respaldadas em critérios puramente jurídico-repressivos ou moralistas, negando ou minimizando, assim, a evidente relação entre conflito e o quadro de injustiça social. Esta é uma leitura legítima e ponderada, mas certamente, não a única. Afinal de contas, nenhum texto é essencialista e unívoco.
De fato, se formos analisar o lema em questão dentro das possibilidades que a linguagem nos permite, reconheceremos que este traz em seu bojo conceitos de grande amplitude, com significados extremamente complexos e, frequentemente distintos, chegando, em alguns casos, a assumir concepções até mesmo antagônicas. Afinal de contas, o que vem a ser “paz” e “justiça”? São realidades emblemáticas e que exatamente pelo seu caráter simbólico estão cheias de lacunas e labirintos, abarcando uma riqueza infinita de sentidos. Para aceitarmos a afirmação anterior devemos admitir que toda palavra é caracterizada pela instabilidade, ou seja, seu significado não está circunscrito ao termo em si mas a outros fatores externos à ela. Exemplificando, o sentido de paz não pode ser apreendido a partir da própria palavra, mas de realidades que extrapolam a linguagem.
De fato, o que garante sentido a uma palavra é um conjunto de elementos culturais amalgamados por um grupo social circunscrito a período histórico que lhe outorga certo grau de estabilidade e naturalidade, qualificando-a, em certos casos, ao posto de realidade universal e inquestionável, ausente, portando, de qualquer ambiguidade. Ao reconhecer a instabilidade da linguagem, e, portanto, da realidade que nos circunda, não refuto a possibilidade de se exprimir por meio do discurso a existência do ser, o que, em outras palavras, significaria defender o niilismo completo. O que levanto é apenas que a apreensão de um termo só pode ser efetivamente realizada a partir da identificação do valor dado a ele e que se encontra sempre às margens do fenômeno puramente lingüístico. Falando de outro modo, a palavra não possui nenhuma autonomia em relação à aquele que a proferiu. É nesse sentido que Saussurre (1969, p.135) afirma em sua teoria de valor: O valor de qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia; nem sequer da palavra que significa ‘sol’ se pode fixar imediatamente o valor sem levar em conta o que lhe existe em redor [...].
A partir das questões supracitadas, creio que podemos retomar a questão da complexidade do lema da CF de 2009. Para ser mais exato, vamos nos ater a problemática do significado das palavras “paz” e “justiça” presentes no lema escolhido.
Em primeiro lugar é importante reconhecer que “paz” é um tipo de termo que tem sido usado durante séculos para designar realidades, condições e estados conscientes e inconscientes diversos. Consultando algumas fontes bibliográficas, logo notaremos que os atributos linguísticos constitutivos do substantivo feminino “paz” não se coadunam sob vários aspectos.
Se para o dicionário Aurélio o termo indica exclusivamente um estado positivo, designando “ausência de lutas, violências ou perturbações sociais”, a univocidade interpretativa do conceito não se dá no âmbito da Igreja Católica. De fato, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, além de mencionar uma paz resultante do amor, registra uma “paz da morte”, qualificada de “horrenda” e caracterizada pela recusa em “abandonar as inimizades e os ódios” [e pela inconclusão de] “pactos firmes e honestos de paz universal”. Notamos, desde já, que a expressão em questão pode designar dois significados opostos para a Igreja: uma realidade falseada, mesmo que legítima, e outra autêntica.
O que garantiria autenticidade da paz? A justiça. A Gaudium et Spes é categórica nesse sentido ao citar o capítulo 32, versículo 78 do profeta Isaías que reconhece a paz como “obra da justiça”. Entretanto, não se trata de um fruto já em estado pleno de maturidade. A Igreja reconhece que a paz “deve ser realizada em perfeição progressiva, pelos homens que têm sede da justiça”. Surge aqui uma questão extremamente interessante. Como é possível falar em “perfeição progressiva”? Não estaríamos negando o princípio fundamental da perfeição ao lhe designar o atributo de progressão? Ainfal de contas, o termo perfeição já não designaria o estado final de uma obra concluída?
Erroneamente foi atribuído à esta palavra o significado de estado de perfeito equilíbrio ou ausência de erros e defeitos de toda natureza. Entretanto, etimologicamente “perfeição” vem de perficio e significa algo que se está fazendo, ou seja, estado inacabado, algo que ainda não se findou. Em suma, o fato da Igreja estimular e promover a implantatio da paz perfeita na terra – a Cidade dos Homens – significa, na prática, reconhecer o processo infinito da construção da paz. Para a Igreja ela nunca estará plenamente acabada na Cidade dos Homens. Esta incompletude é que faz com que o cristão aspire outra pólis, a Cidade de Deus, que nas palavras de Santo Agostinho (apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 115), estará “liberta de todo mal e repleta de todo bem, gozando indefectivelmente na alegria dos gáudios eternos”. Só nos resta construir nossa frágil cidade, reconhecendo a perfeição da obra como transitus, processus, desejando herdar a Cidade de Deus.
Entretanto, tal visão transcendental não refuta a necessidade de fazer com o reino de Deus se instaure, mesmo que de forma limitada, em nosso mundo sensível e imperfeito. Qual o material adequado para a edificação de tal cidade em “perfeição progressiva”? O lema da CF de 2009 é claro ao reconhecer a justiça como fundamento de uma paz que, diferente da “paz de morte”, seja duradoura. Em outras palavras, a justiça é causalidade e a paz é efeito.
Mas o que vem a ser “justiça”? Para a Igreja a justiça é uma virtude moral que implica “na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido” (CATECISMO..., 1999, p. 486). Nesta definição já percebemos que, em oposição à concepção usual de justiça – alicerçada simplesmente no equilíbrio de forças entre os indivíduos – a Igreja assinala a justiça como realidade dual, caracterizada por uma relação adequada em relação à divindade e aos homens.
Ser justo significa, em primeiro lugar, submeter-se à vontade de Deus. Santo Agostinho (apud CATECISMO..., 1999, p. 48) é taxativo ao reconhecer a obediência à divindade como a verdadeira raiz da justiça e, por consequência, o caminho de acesso à felicidade: “Viver bem não é outra coisa senão amar a Deus [...]. Dedicar-lhe um amor [...] que obedece exclusivamente a Ele (e nisto consiste a justiça]”. Corre-se o risco, frente a uma sociedade cética, negar a gênese divina da justiça. Por outro lado, se fôssemos nos ater a esta única face do conceito de justiça, a Igreja poderia ser acusada de ser excessivamente angélica e pouco comprometida com a Cidade dos Homens, que, mesmo sendo frágil e inconstante, é de fato a realidade primeira que nos cerca.
Entretanto, vale reafirmar que a concepção de justiça proposta pela Igreja é dual e não dualista, ou seja, deve ser compreendida como realidade constituída por duas facetas, mas facetas que não se contrapõem em momento algum. Ou pelo menos não deveriam. Afinal de contas, ser dócil à vontade divina pressupõe ser justo para com o outro, ou seja, ser reto para com o próximo, respeitando, assim, os direitos de cada um. É evidente que a concepção de próximo implica admitir a existência de uma natureza comum entre os homens.
Para a Igreja a concepção de pessoa humana é profunda e abarca o mistério da filiação divina. A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada pelo fato de todo indivíduo nascer de Deus e voltar para Deus. Vemos então entrelaçar intimamente as duas facetas conceituais de justiça. A miséria social atenta contra a paz porque é injusta e o mesmo se dá com o aborto.
Não se trata de uma mera visão estreita ou retrógada. Não poderíamos compreender com justeza o pensamento moral da Igreja se não reconhecermos que sua concepção de dignidade de pessoa humana se nutre da concepção de Deus como criador e pai. Corre o risco das discussões da CF de 2009 terem gravitado apenas em torno do problema da justiça social em seu caráter mais assitencialista ou político-partidário. Na verdade, defender a justiça significa defender o que o homem tem de mais precioso: a filiação divina. Veja o porquê do aborto, da eutanásia, da corrida armamentista e da exploração social e sexual serem combatidas pela Igreja. Não se tratam de questões desconectas, mas problemas comuns que violam a justiça e impedem que a paz se visibilize. Usando o jargão tipicamente brasileiro, a exploração social no Haiti e a prática da eutanásia na Holanda são farinhas do mesmo saco! Aqui não se trata mais de defender nem um discurso legal, crimonológico, nem outro que priorize discussões centradas em cor, gênero ou classe social.
O que se observa, de fato, é que a Igreja aborda a justiça do modo mais apropriado, ou sejam com ponderação. Ela não se restringe a tratar o problema da dignidade do homem dentro de uma perspectiva assistencialista. O Estado costuma adotar essa postura por depender de votos dos excluídos com muita regularidade. A Igreja trata o homem como ser maduro, capacitado a construir uma história em que corpo e alma, terra e céu, morte e vida, eu e o outro não se conflituem, mas vivam em equilíbrio. Assim, a CF não nos convida a combater apenas injustiças econômicas, mas toda forma de vida ou práxis ideológica que rompa com a harmonia entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens.