quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Carta Aberta ao Embaixador da China no Brasil

Exmo. Embaixador da China no Brasil, Senhor Qiu Xiaoqi

Tenho acompanhado com interesse a polêmica travada pelo governo de vosso país com o Comitê Nobel. Causou-me admiração o discurso da porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Senhora Jiang Yu, afirmando que "O povo chinês e a esmagadora maioria das pessoas no mundo são contrárias ao que faz o Comitê Nobel". Gostaria que Vossa Senhoria, enquanto representante daquela Nação, me informasse categoricamente de onde aquela diplomata extraiu a informação de que a maior parte do mundo se opõe a premiação do Liu Xiaobo e de outras deliberações emanadas daquele grupo. Será que aquela senhora reduziu os habitantes do planeta a cidadãos que, lamentavelmente, vivem sob o jugo de ideologias que negam os seus direitos mais básicos, como a liberdade de expressão? Será que o mundo se restringe a cidadãos que, acuados por sistemas opressores, dizem sempre “sim”?

Saiba que eu, como cidadão do mundo, apoio veementemente as decisões daquele Comitê, e de modo particular, o fato de ter premiado o Senhor Liu Xiaobo. Este senhor não é apenas um cidadão chinês, mas ele encarna a figura do cidadão do mundo, defensor dos ideais mais nobres de liberdade e fraternidade que, lamentavelmente, o seu país insiste em desprezar.

Respeitosamente,

Cristian Santos

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terça-feira, 30 de novembro de 2010

Emenda Constitucional


Conceito: instrumento reformador da Carta Magna

Premissa: o dever-ser constitucional deve refletir as circunstâncias presentes

Iniciativa: um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; Presidente da República; mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

Vedação: ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

Matérias impossíveis de serem objeto de emenda: a) a forma federativa de Estado; b) o voto direto, secreto, universal e periódico; c) a separação dos Poderes; d) os direitos e garantias individuais.

Processo legislativo: a) Quorum: 3/3 nos 2 turnos nas 2 casa, aprovada se obter, no mínimo, 3/5 dos votos dos respectivos membros, em cada votação; b) Se sofrer mudança em uma casa legislativa, a outra tem que aquiescer; c) Emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.

sábado, 27 de novembro de 2010

A Cidadania na III Revolução Industrial


A estrutura celular instaurada no modelo de produção capitalista pós-fordista estabeleceu um novo modo de controle das atividades dos trabalhadores. Penso que Foucault pode nos ajudar a compreender sobremaneira a fala em questão. Se é verdade que a realidade contemporânea no plano do trabalho foi diminuída consideravelmente, em razão da imposição de novas situações bem distintas das concebidas por Ford e aplicadas por Taylor –- fala-se em “[...] trabalho polivalente, multifuncional, flexível” –- as estratégias de controle também tornaram-se muito mais requintadas. O exercício do poder ampliou-se assustadoramente, assumindo uma multiplicidade de facetas. Os novos mecanismos de controle no espaço produtivo se justificariam por meio de um discurso fascinante, profuso, alicerçado na ideia de maior autonomia dos trabalhadores e na concorrência “sadia” entre eles. Pro exemplo, ao invés de supervisores, fala-se em equipes de cooperadores, cada um vigiando o outro, impulsionador por metas. É a analítica do poder que se desmembra num grande conjunto de movimentos e ritos.
Além dessa questão da mudança de percepção do exercício do controle no âmbito das fábricas, temos que reconhecer que o trabalho, ao deixar de ser o único elemento fundador do ser social, permitiu o surgimento de discursos até então minimizados na modernidade. Discursos de gênero, por exemplo, ocupam enorme espaço nas lutas de classe. É evidente que observamos uma sobreposição de discursos que, ao invés de se negarem, se complementam. Desse modo, há uma articulação de variáveis constitutivas do homem moderno que acabam resvalando no seu ambiente de trabalho, que ainda permanece sendo um espaço privilegiado de identificação das injustiças sociais, ou se preferirmos, da “superestrutura” concebida por Marx. Sendo assim, estas novas leituras sociais, que em um primeiro momento podem parecer estranhas, se integram. De certo modo, a multifuncionalidade do homem na pós-modernidade implicou na ampliação do espaço de luta para a construção da cidadania, que, contudo, continua profundamente alicerçada no questionamento das estruturas socioeconômicas injustas.

Cristian Santos
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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Cidadania no Pensamento de Hobbes e Marx

O desenvolvimento do conceito de cidadania está profundamente associado a configuração do Estado moderno, nascido sob as ruínas da sociedade medieval. Há uma série de questões que norteiam o pensamento político dos mais diversos filósofos em relação ao fenômeno conhecido por cidadania. De modo amplo, poderíamos afirmar que todas as correntes de pensamento estão pautadas em três grandes aspectos: 1ª) O bem do nomos, ou, se preferirmos, da cidade, tem primazia em relação aos interesses privados: essa questão será extremamente importante no processo de legitimação do conceito de propriedade privada; 2ª) O exercício do poder estatal implica na privação ou redução de direitos, seja num plano micro (os indivíduos), ou num macro (as instituições centradas em outras fontes de poder, como o espiritual). Em virtude da profusão de leituras, nos deteremos em analisar dois autores, a saber: Hobbes e Marx.

Hobbes parte do princípio de o estado permanente de conflito entre os homens -- todo contra todos (Bellum omnia omnes) -- é resultante do estado natural das coisas, ou seja, da possibilidade real de qualquer homem se apropriar de tudo. Hobbes concebe esse mover-se em direção ao seus interesses de "direito". Em outras palavras, no estado natural, é direito do indivíduo ter direito a tudo. O problema é que as coisas são escassas, o que faz com que o direito ilimitado do homem e a insuficiência de bens que atendam a todas as aspirações resultem em confrontos de toda sorte. Hobbes aponta como solução para tal estado de desarmonia coletiva a figura do Leviatã, uma autoridade ou colegiado que, investido em uma autoridade inquestionável, rege a ordem social. Ao contrário de Maquiavel, que desenvolve seu conceito de ética política e, portanto, de cidadania dentro de uma margem muito mais livre (para ele a virtude não é um ato intrinsecamente bom, mas circunstancialmente adequado, justificada pela única ambição de garantir a manutenção do Estado), o Leviatã concebido por Hobbes, mesmo assumindo um poder absoluto, sua atuação é regida por leis. Há, portanto, uma limitação do exercício do poder. Hobbes, por exemplo, reconhece a existência de algumas garantias inegociáveis, ou se preferirmos, cláusulas pétreas que regerão a ordem social, como o direito à vida e o direito à propriedade individual. Observa-se, portanto, que dentro de sua linha de pensamento, a cidadania esta assentada em duas colunas: a) a existência de uma instituição ou de uma pessoa que exercerá o poder absoluto para o bem comum, tendo por premissa que, mesmo sendo de direito de todo homem arrogar as coisas para o seu sustento, a limitação destes bens provocam um estado permanente de desordem; b) a propriedade privada e outros direitos, garantidos por um ordenamento jurídico, garante grande margem de segurança ao Estado e certa equidade aos seus cidadãos.

Marx, ao contrário, vislumbra o Estado burguês como força opressora. Sua superestrutura é o suporte para que a ideologia dominante se conserve no exercício do poder. Torna-se evidente que a concepção de poder em Marx está subordinada a dialética gendrada sob um olhar fortemente econômico: de um lado os que detêm o capital, ocupando o topo da pirâmide; do outro, os destituídos de qualquer bem de produção. Estes, evidentemente, como meio único de sobrevivência, oferecem sua única força, a de trabalho, para os primeiros. O conceito de mais valia nasce da constatação de que o preço pago pelo trabalho não condiz com o esforço empregado. Desse modo, a riqueza produzida é resultante de uma relação injusta, abominável, alimentada sempre pela lógica da demanda (quanto mais gente ociosa, menor o valor da mão de obra e, portanto, maior a margem de lucro). Ao contrário de Hobbes, que entende a propriedade privada como garantia de cidadania, Marx a percebe como fonte de desigualdades sociais. Para ele, a luta de classes tem sua gênese na concepção de direitos naturais incontestáveis e perpétuos, particularmente o de propriedade particular. Dentro dessa lógica injusta, a cidadania para o filósofo alemão só pode ser instaurada efetivamente se houver a supressão da sociedade de classes, o que, em si, implica no fim da propriedade privada. Se a visão de cidadania proposta por Hobbes está assentada no desejo primário de paz entre os homens, não entrando no mérito de classes ou estamentos de ordenação da sociedade, Marx nega a possibilidade de seu estabelecimento com a presença de um grande monstro, o Leviatã. Ao invés disso, a cidadania vai sendo forjada a partir de um caráter revolucionário, de luta, de oposição direta e sistemática com o Estado burguês.

Cristian Santos

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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Os Pressupostos Processuais

Comumente a doutrina subdivide os pressupostos processuais em duas grandes categorias, a saber: pressupostos processuais extrínsecos e pressupostos processuais intrínsecos.
Os pressupostos processuais extrínsecos estão vinculados às pessoas ou institutos atrelados à ação judicial. São eles:

a) Juízo competente;
b) Juiz imparcial, prevento de suspeição ou outro modo de impedimento;
c) Capacidade jurídica das partes;
d) Capacidade postulatória das partes (caso da Lei 9.099);
e) Capacidade postulatória do advogado ou do Ministério Público.

Os pressupostos processuais intrínsecos, por sua vez, estão relacionados ao próprio modus operandi do rito processual. São divididos em três:

a) Citação;
b) Petição inicial;
c) Sentença (com ou sem a análise do mérito).

Vale destacar que há, ainda, dois pressupostos processuais negativos que são elementos ou realidades a serem evitadas já no início do curso do processo. De fato, caso se façam presentes, o processo apresentado em juízo é inválido. Estes dois fenômenos são: litispendência e coisa julgada. Ambos apresentam duas ou mais lides constituídas pelas mesmas partes, causa de pedir e pedido. A única distinção entre ambos é o fato de que o primeiro refere-se às lides em tramitação e o segundo, por sua vez, já transitou em julgado.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Paz e Justiça Verídicas: Uma Leitura Possível

Como de costume, a Igreja Católica, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), propôs, no início da quaresma deste ano, um tema que servisse de reflexão aos seus fiéis e a todos os homens de boa vontade. Para esse ano o tema da Campanha da Fraternidade (CF) foi segurança pública, tendo como lema “A paz é fruto da justiça”. Trata-se, sem dúvida, de um assunto extremamente propício e imperioso para uma nação alarmada com os mais altos índices de violência em sua história a qual tem vitimado cidadãos de todas as classes sociais.

Além disso, vale destacar que a recomendação da Igreja é analisar o problema da segurança pública brasileira dentro de uma perspectiva social e não criminológica, evitando, assim, apontar soluções simplistas respaldadas em critérios puramente jurídico-repressivos ou moralistas, negando ou minimizando, assim, a evidente relação entre conflito e o quadro de injustiça social. Esta é uma leitura legítima e ponderada, mas certamente, não a única. Afinal de contas, nenhum texto é essencialista e unívoco.

De fato, se formos analisar o lema em questão dentro das possibilidades que a linguagem nos permite, reconheceremos que este traz em seu bojo conceitos de grande amplitude, com significados extremamente complexos e, frequentemente distintos, chegando, em alguns casos, a assumir concepções até mesmo antagônicas. Afinal de contas, o que vem a ser “paz” e “justiça”? São realidades emblemáticas e que exatamente pelo seu caráter simbólico estão cheias de lacunas e labirintos, abarcando uma riqueza infinita de sentidos. Para aceitarmos a afirmação anterior devemos admitir que toda palavra é caracterizada pela instabilidade, ou seja, seu significado não está circunscrito ao termo em si mas a outros fatores externos à ela. Exemplificando, o sentido de paz não pode ser apreendido a partir da própria palavra, mas de realidades que extrapolam a linguagem.

De fato, o que garante sentido a uma palavra é um conjunto de elementos culturais amalgamados por um grupo social circunscrito a período histórico que lhe outorga certo grau de estabilidade e naturalidade, qualificando-a, em certos casos, ao posto de realidade universal e inquestionável, ausente, portando, de qualquer ambiguidade. Ao reconhecer a instabilidade da linguagem, e, portanto, da realidade que nos circunda, não refuto a possibilidade de se exprimir por meio do discurso a existência do ser, o que, em outras palavras, significaria defender o niilismo completo. O que levanto é apenas que a apreensão de um termo só pode ser efetivamente realizada a partir da identificação do valor dado a ele e que se encontra sempre às margens do fenômeno puramente lingüístico. Falando de outro modo, a palavra não possui nenhuma autonomia em relação à aquele que a proferiu. É nesse sentido que Saussurre (1969, p.135) afirma em sua teoria de valor: O valor de qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia; nem sequer da palavra que significa ‘sol’ se pode fixar imediatamente o valor sem levar em conta o que lhe existe em redor [...].

A partir das questões supracitadas, creio que podemos retomar a questão da complexidade do lema da CF de 2009. Para ser mais exato, vamos nos ater a problemática do significado das palavras “paz” e “justiça” presentes no lema escolhido.
Em primeiro lugar é importante reconhecer que “paz” é um tipo de termo que tem sido usado durante séculos para designar realidades, condições e estados conscientes e inconscientes diversos. Consultando algumas fontes bibliográficas, logo notaremos que os atributos linguísticos constitutivos do substantivo feminino “paz” não se coadunam sob vários aspectos.

Se para o dicionário Aurélio o termo indica exclusivamente um estado positivo, designando “ausência de lutas, violências ou perturbações sociais”, a univocidade interpretativa do conceito não se dá no âmbito da Igreja Católica. De fato, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, além de mencionar uma paz resultante do amor, registra uma “paz da morte”, qualificada de “horrenda” e caracterizada pela recusa em “abandonar as inimizades e os ódios” [e pela inconclusão de] “pactos firmes e honestos de paz universal”. Notamos, desde já, que a expressão em questão pode designar dois significados opostos para a Igreja: uma realidade falseada, mesmo que legítima, e outra autêntica.

O que garantiria autenticidade da paz? A justiça. A Gaudium et Spes é categórica nesse sentido ao citar o capítulo 32, versículo 78 do profeta Isaías que reconhece a paz como “obra da justiça”. Entretanto, não se trata de um fruto já em estado pleno de maturidade. A Igreja reconhece que a paz “deve ser realizada em perfeição progressiva, pelos homens que têm sede da justiça”. Surge aqui uma questão extremamente interessante. Como é possível falar em “perfeição progressiva”? Não estaríamos negando o princípio fundamental da perfeição ao lhe designar o atributo de progressão? Ainfal de contas, o termo perfeição já não designaria o estado final de uma obra concluída?

Erroneamente foi atribuído à esta palavra o significado de estado de perfeito equilíbrio ou ausência de erros e defeitos de toda natureza. Entretanto, etimologicamente “perfeição” vem de perficio e significa algo que se está fazendo, ou seja, estado inacabado, algo que ainda não se findou. Em suma, o fato da Igreja estimular e promover a implantatio da paz perfeita na terra – a Cidade dos Homens – significa, na prática, reconhecer o processo infinito da construção da paz. Para a Igreja ela nunca estará plenamente acabada na Cidade dos Homens. Esta incompletude é que faz com que o cristão aspire outra pólis, a Cidade de Deus, que nas palavras de Santo Agostinho (apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 115), estará “liberta de todo mal e repleta de todo bem, gozando indefectivelmente na alegria dos gáudios eternos”. Só nos resta construir nossa frágil cidade, reconhecendo a perfeição da obra como transitus, processus, desejando herdar a Cidade de Deus.

Entretanto, tal visão transcendental não refuta a necessidade de fazer com o reino de Deus se instaure, mesmo que de forma limitada, em nosso mundo sensível e imperfeito. Qual o material adequado para a edificação de tal cidade em “perfeição progressiva”? O lema da CF de 2009 é claro ao reconhecer a justiça como fundamento de uma paz que, diferente da “paz de morte”, seja duradoura. Em outras palavras, a justiça é causalidade e a paz é efeito.
Mas o que vem a ser “justiça”? Para a Igreja a justiça é uma virtude moral que implica “na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido” (CATECISMO..., 1999, p. 486). Nesta definição já percebemos que, em oposição à concepção usual de justiça – alicerçada simplesmente no equilíbrio de forças entre os indivíduos – a Igreja assinala a justiça como realidade dual, caracterizada por uma relação adequada em relação à divindade e aos homens.

Ser justo significa, em primeiro lugar, submeter-se à vontade de Deus. Santo Agostinho (apud CATECISMO..., 1999, p. 48) é taxativo ao reconhecer a obediência à divindade como a verdadeira raiz da justiça e, por consequência, o caminho de acesso à felicidade: “Viver bem não é outra coisa senão amar a Deus [...]. Dedicar-lhe um amor [...] que obedece exclusivamente a Ele (e nisto consiste a justiça]”. Corre-se o risco, frente a uma sociedade cética, negar a gênese divina da justiça. Por outro lado, se fôssemos nos ater a esta única face do conceito de justiça, a Igreja poderia ser acusada de ser excessivamente angélica e pouco comprometida com a Cidade dos Homens, que, mesmo sendo frágil e inconstante, é de fato a realidade primeira que nos cerca.
Entretanto, vale reafirmar que a concepção de justiça proposta pela Igreja é dual e não dualista, ou seja, deve ser compreendida como realidade constituída por duas facetas, mas facetas que não se contrapõem em momento algum. Ou pelo menos não deveriam. Afinal de contas, ser dócil à vontade divina pressupõe ser justo para com o outro, ou seja, ser reto para com o próximo, respeitando, assim, os direitos de cada um. É evidente que a concepção de próximo implica admitir a existência de uma natureza comum entre os homens.

Para a Igreja a concepção de pessoa humana é profunda e abarca o mistério da filiação divina. A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada pelo fato de todo indivíduo nascer de Deus e voltar para Deus. Vemos então entrelaçar intimamente as duas facetas conceituais de justiça. A miséria social atenta contra a paz porque é injusta e o mesmo se dá com o aborto.

Não se trata de uma mera visão estreita ou retrógada. Não poderíamos compreender com justeza o pensamento moral da Igreja se não reconhecermos que sua concepção de dignidade de pessoa humana se nutre da concepção de Deus como criador e pai. Corre o risco das discussões da CF de 2009 terem gravitado apenas em torno do problema da justiça social em seu caráter mais assitencialista ou político-partidário. Na verdade, defender a justiça significa defender o que o homem tem de mais precioso: a filiação divina. Veja o porquê do aborto, da eutanásia, da corrida armamentista e da exploração social e sexual serem combatidas pela Igreja. Não se tratam de questões desconectas, mas problemas comuns que violam a justiça e impedem que a paz se visibilize. Usando o jargão tipicamente brasileiro, a exploração social no Haiti e a prática da eutanásia na Holanda são farinhas do mesmo saco! Aqui não se trata mais de defender nem um discurso legal, crimonológico, nem outro que priorize discussões centradas em cor, gênero ou classe social.
O que se observa, de fato, é que a Igreja aborda a justiça do modo mais apropriado, ou sejam com ponderação. Ela não se restringe a tratar o problema da dignidade do homem dentro de uma perspectiva assistencialista. O Estado costuma adotar essa postura por depender de votos dos excluídos com muita regularidade. A Igreja trata o homem como ser maduro, capacitado a construir uma história em que corpo e alma, terra e céu, morte e vida, eu e o outro não se conflituem, mas vivam em equilíbrio. Assim, a CF não nos convida a combater apenas injustiças econômicas, mas toda forma de vida ou práxis ideológica que rompa com a harmonia entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Discurso Jurídico e Preconceito

Seria legítimo, ou, no mínimo, admissível, um profissional do Direito adotar discursos ou comportamentos discriminatórios ou preconceituosos? É profundamente tentador responder negativamente a questão de forma intempestiva, respaldados nos ciclos sócio-culturais da História humana, eivados por injustiças de toda sorte. Entretanto, para tecermos qualquer comentário de maneira responsável concernente ao assunto, devemos, primariamente, recorrer ao significado das palavras “discriminação” e “preconceito”.

Iremos nos valer do pensamento de Arnold Rose, sociólogo americano que na série Raça e Ciência, editada pela UNESCO, debruçou-se sob as origens, causas e conseqüências do preconceito. Este último foi definido por Rose (1972, p. 162) como um “estado de espírito” e a discriminação como uma maneira de agir, um modus agendi resultante desse mesmo estado de espírito.

A partir dessa definição sociológica, torna-se evidente o caráter concreto da discriminação que, muito mais do que simplesmente “distinguir ou discernir, [...] separar, especificar,” (FERREIRA, 1986, p. 596), trata de “infligir a certas pessoas um tratamento imerecido” (ROSE, 1972, p. 162, grifo nosso). Sendo assim, já podemos refutar com propriedade a idéia de um advogado, ou qualquer outro cidadão, agir de forma discriminatória, independentemente das circunstâncias envolvidas na ação.

É interessante observar que Arnold Rose recorre ao verbo “infligir” para qualificar o comportamento discriminatório. Creio que houve, por parte de Rose, uma intencionalidade em atribuir à discriminação um significado de dinamismo, de atitude, isenta, portanto, de qualquer resquício de passividade ou de inconsciência. De fato, o verbo “infligir” – do latim, infligere – nos remete à idéia de castigo, repreensão, aplicação de pena. Nesse contexto, a vítima do preconceito é vislumbrada como réu, criminoso sentenciado, merecedor, portanto, de uma punição.

Desse modo, é possível, desde já, reconhecer a discriminação como realidade visível, objetiva, corpórea, distintiva e punitiva. O direito sancionador se configura a partir da classificação social e comportamental, o que pressupõe, evidentemente, a existência de um sistema axiológico qualificativo-atributivo rígido, que premia ou desvalora grupos e atributos segundo critérios estabelecidos dentro de premissas cristalizadas. Grupos sociais são estereotipados a partir deste processo de generalização.

A partir deste panorama conceitual pode advir outra questão. Qual é a gênese do comportamento do ofensor que se digna capacitado a atribuir valores a comportamentos individuais ou comunitários? Rose (1972, p. 167) nos auxilia nesta empreitada “A ignorância [...] é a base dos preconceitos, toma aspectos dos mais diversos”. Ignorar significa desconhecer os atributos e variáveis que intervém direta ou indiretamente em um fenômeno, seja este social ou não. A pretensão de tudo saber faz com que equívocos sejam disseminados como realidades, recorrendo-se, para isso, a mecanismos comparativos entre o modus vivendi ideal do detentor do discurso e outros estados “anômalos” de comportamento.

Ser protagonista de práxis discriminatórias é negar o princípio de dignidade da pessoa humana. Materializar diferenças, mesmo que de forma não positivada, é rechaçar a inexauribilidade de valores fundamentais indisponíveis. Adotar tais posturas na seara jurídica implicaria na recusa, mesmo que inconsciente, do dever universal de se “fazer direito”, especialmente no momento histórico em que vivemos, marcado pelo desejo de respeitar o indivíduo em todas as suas singularidades.

O que se espera de um advogado é a capacidade de ler os sinais dos tempos. Sinais dos tempos que se corporificam nos pleitos sem julgamento de mérito, nas vozes dissonantes de magistrados taxados de heterodoxos e nas proposições vanguardistas tramitando no Congresso. Em outras palavras, espera-se que um advogado reconheça o papel efetivo da ética na construção de um ordenamento jurídico que prime pela tutela das diferenças em todos os campos (culturais, políticos, sexuais e religiosos).

É tarefa do advogado visibilizar corpos e instigar vozes emudecidas. É vital, para isso, construir discursos. E o que faz um advogado senão produzir discursos? Entretanto, a edificação de uma fala exige o rompimento com outros discursos hegemônicos, reinterpretando verdades, desestabilizando-as e implodindo fronteiras axiológicas. Desse modo, a tutela jurisdicional pode se dilatar, fazendo com que a solidariedade, princípio fundamental da terceira geração de direitos (MORAES, 2003), permeie todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Bibliografia
DERRIDA, J. O olho da universidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

DISCRIMINAÇÃO. In: FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

MORAES, A. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

ROSE, A. M. A origem dos preconceitos. In: Raça e ciência II. São Paulo: Perspectiva,1972.